Nascida e criada no Xingu, Leiru Mehinaku entende pouco o
português. Não sabe ao certo a própria idade nem a dos quatro filhos, que cria
sozinha. Em 2014, um ano após ingressar no programa
Bolsa Família, deixou sua aldeia e se mudou para Canarana (a 607 km a leste de
Cuiabá).
"Achei
que fosse o suficiente. Mas, depois que me mudei aqui, vi que era muito
caro", disse, traduzida por um sobrinho, em conversa na casa de tijolo
aparente e três cômodos nos fundos de um bar. Um fogão velho de quatro bocas é
o único eletrodoméstico. Sobre a mesa, seis sacos de arroz, três garrafas de
óleo e dois pacotes de café.
"Quando
morava na aldeia, não precisava de dinheiro. Aqui, fico um pouco com dinheiro e
acaba", disse Leiru. Apesar das dificuldades, ela pretende continuar na
cidade para que seus filhos "estudem e entendam melhor o português do que
eu". O sustento é assegurado principalmente pelo filho adolescente, que
trabalha numa borracharia –sua renda mensal do Bolsa Família é de R$ 300.
Assim
como Leiru e os filhos, quase metade da população indígena no Brasil participa
do principal programa social do país. Só na Amazônia Legal, são 63.165
famílias, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social.
Implantados
em terras indígenas de todas as regiões do país sem nenhuma adaptação, o Bolsa
Família –e outros benefícios com menor abrangência, como a aposentadoria rural
e o auxílio-maternidade–, vem provocando mudanças profundas no modo de vida
tradicional.
O principal motivo é que esses programas obrigam os beneficiários
a se deslocar durante dias até a cidade para
sacar o dinheiro no caixa eletrônico e realizar trâmites burocráticos. No
Xingu, essa viagem dura até 20 dias; no alto rio Negro (AM), o deslocamento
chega a três meses.
Durante
nove dias, a reportagem da Folha conversou com famílias e lideranças
indígenas no Xingu e em Canarana, a principal cidade do entorno do parque. Ali,
com apoio da Funai (Fundação Nacional do Índio), o programa se popularizou
principalmente entre os anos de 2012 e 2013, por meio de mutirões realizados
nas aldeias.
"A
Funai foi um órgão muito desprestigiado nos últimos governos, com um orçamento
sem possibilidade de fazer muitos projetos", afirma André Villas-Bôas,
secretário executivo do Instituto Socioambiental (ISA). "Em vários
lugares, se restringiu a criar condições para cadastrar e facilitar o
transporte dessas famílias para acessar esses programas."
Nas
conversas, os xinguanos afirmam que o benefício ajuda a comprar produtos do
cotidiano, como facões e material de pesca. Por outro lado, relatam casos de
endividamento para pagar o transporte, mudanças mal planejadas para a cidade,
consumo excessivo de comida "do branco" e retenção ilegal de cartões
por comerciantes.
"A família acaba gastando todo o dinheiro com frete, muito
caro. Paga R$ 600 só de ida. Pra buscar [o benefício], acaba se
endividando", afirma Marcelo Kamayurá, 41, agente de saúde e liderança da
aldeia Morená.
"Se
perder o foco, a pessoa fica dez, 15 dias dependendo de uma carona. Atrasa a
roça, o serviço na aldeia."
Os
obstáculos do Bolsa Família e de outros programas sociais não se restringem ao
Xingu, segundo o presidente interino da Funai,
Artur Mendes. Ele diz que, apesar de o programa financiar compras de produtos
já incorporados, como sal e pilha, o vínculo obrigatório com a cidade altera a
rotina dos indígenas de comunidades mais isoladas.
"Há
um esvaziamento das aldeias e uma mudança de hábito, de vida, inclusive
afetando os mais velhos, porque isso também acontece na aposentadoria
[rural]", afirma Mendes.
ALIMENTAÇÃO
Um
dos impactos mais fortes da entrada do dinheiro dos programas sociais e das
visitas à cidade está na alimentação. No Xingu, o café açucarado pela manhã, o
refrigerante e outros produtos industrializados têm cada vez mais penetração.
Há
três décadas atuando no Xingu, o médico e professor da Unifesp (Universidade
Federal de SP) Douglas Rodrigues afirma que o Bolsa Família tem um peso, ainda
não medido, na aceleração desse processo, com efeitos devastadores na saúde.
Em
1986, ninguém foi diagnosticado com hipertensão ou diabetes durante amplo
inquérito de saúde no Xingu do qual Rodrigues participou. Nos últimos anos,
essas doenças estão cada vez mais comuns por causa das mudanças na dieta.
"A
comida que vem de fora não tem regra nem a nossa variedade. Eles acabam usando
de maneira completamente equivocada. Muito óleo, sal, açúcar", afirma a
antropóloga e médica da Unifesp Sofia Mendonça, mulher de Rodrigues e também
com larga experiência no Xingu.
Para
Rodrigues, a implantação ativa do Bolsa Família em terras indígenas "parte
de uma visão equivocada do que é pobre": "Na medida em que a política
de demarcação de terras vai sendo abandonada, sobretudo a partir da segunda
gestão do governo Lula [2007-2010], sobram aos índios esses programas assistencialistas,
que drenam a sua população para as cidades e para o mercado".
ADAPTAÇÃO
Para
minimizar esses problemas, algumas aldeias criaram soluções coletivas. Em uma
comunidade da etnia waura, os cartões do Bolsa Família ficam com estudantes que
moram na cidade e são mantidos pela comunidade. Com isso, os beneficiários não
precisam ir à cidade no prazo máximo de 90 dias, depois do qual o dinheiro fica
indisponível.
As
lideranças indígenas defendem que a solução não é eliminar a Bolsa Família, mas
fazer adaptações, como a implantação de pontos de saque em locais estratégicos
do Xingu ou criar programas específicos à realidade local.
"Lá
fora, a aplicação desse programa é pra tirar a família da miséria. Mas, no
nosso caso, temos a nossa alimentação: peixe, milho, mandioca. O importante é
fazer um programa de incentivo para continuarmos fazendo as roças do nosso
modo", afirma Kamayurá.
Liderança
do Xingu e funcionário da Funai, Ianukula Kaiabi Suia, 38, afirma que o
dinheiro "é o transformador de tudo" e que não há volta atrás:
"Os povos indígenas estão cada vez mais inseridos nesse sistema".
"Mas,
se o dinheiro é tão desequilibrador, existe uma ausência de conversa mais
aprofundada. Caso contrário, daqui a um tempo vamos ficar cada vez mais
egoístas. O costume de compartilhar a nossa comida e as nossas coisas com os
parentes talvez venha a desaparecer. É a minha preocupação."
ERRAMOS (Folha): O conteúdo desta página foi alterado para refletir o abaixo
- Cerca de 60,4% das famílias de territórios indígenas recebem o Bolsa Família, não 0,4%, como informou incorretamente o infográfico que acompanhou a reportagem.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/09/1810078-bolsa-familia-altera-rotina-de-indigenas-na-regiao-do-xingu.shtml
Eniado por:
Profº Marcelo Osório Costa.
O bolsa família ao invés de auxiliar as famílias indígenas está dificultando suas vidas pelo fato de eles terem que se locomover ate a cidade para receber seus benefícios.
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