José
Sebastião da Rosa, mais conhecido como Juca Rosa, foi um dos mais importantes e
afamados líderes religiosos negros que o Rio de Janeiro conheceu. Nascido em
1833, filho de mãe africana, trabalhou como alfaiate e cocheiro antes de se
tornar o grande Pai Quibombo, como também era chamado. Na década de 1860,
vivendo no centro da Corte, na rua Senhor dos Passos, quase esquina com a rua
do Núncio, Rosa liderava uma misteriosa seita, que agregava diversos adeptos.
Além dos negros, dos trabalhadores escravos, livres e libertos e dos
capoeiras, figuravam também, entre seus seguidores, políticos, ricos comerciantes,
membros das elites econômicas brancas e letradas. Graças ao prestígio que
adquiriu, Rosa estabeleceu relações com pessoas importantes da sociedade e suas
cerimônias reuniam membros das mais diferentes origens sociais, que se
deslocavam até sua casa em busca de seus preciosos – e caros – conselhos e
prodigiosas curas. Por caminhos muito particulares, Juca Rosa tornou-se figura
notória na sociedade carioca do período.
Não
se tratava de um mero feiticeiro ou rezador, apenas mais um entre tantos e tão
variados praticantes de diferentes religiões e artes de cura que habitavam a
Corte, concorrendo com os médicos científicos na disputa por pacientes. Afinal,
no Rio de Janeiro do final do século XIX, assim como em todo o país, as mais
diversas artes de cura conviviam lado a lado com a medicina oficial do Império.
Embora proibidas por lei e arduamente combatidas por grupos de médicos e por
setores da imprensa, as práticas ilegais de medicina estavam presentes com
bastante força no cotidiano dos mais distintos setores sociais. Mas Juca Rosa,
que concentrava as atividades de líder religioso e curandeiro, era um caso
especial: seu nome tornou-se sinônimo de líder religioso afro-brasileiro, ou
“feiticeiro negro”, como diziam as publicações da época, e associado a práticas
supersticiosas de pessoas ignorantes.
Entretanto,
uma denúncia anônima que o acusava de envolvimento sexual com várias mulheres,
dirigida ao segundo delegado de polícia da Corte, interrompeu suas atividades,
levando-o à prisão. Quando o julgamento de Rosa foi iniciado, em 5 de julho de
1871, ele já estava preso havia quase oito meses, sendo processado pelo crime
de estelionato. Em seguida, passou a figurar nos periódicos tradicionais e nos
pequenos jornais humorísticos, em publicações avulsas, e até mesmo em uma peça
de teatro; virou notícia até em jornais de outras capitais, como Belém e
Salvador. Todos eles enfatizavam o escândalo de seu envolvimento não apenas com
prostitutas, costureiras, mulheres pobres e negras, mas também com senhoras
brancas e casadas, provenientes de famílias influentes na vida política da
Corte – uma de suas amantes seria, segundo especulações da imprensa, a esposa
de um importante político, possivelmente o autor da denúncia. Tudo isso
contribuía para a caracterização de Rosa como um monstro imoral e cruel. No
entanto, as senhoras, que eram a maioria de seus seguidores, reconheciam o
líder como um “homem de atrativos”, sempre bem vestido, usando correntes, anéis
e outras jóias.
Os
jornais estampavam notícias dizendo que Rosa cometia “práticas sacrílegas”,
apelando ora para a religião, ora para “ridículas e estúpidas feitiçarias”; que
teria “uma posição importante em um círculo de mulheres”, pobres vítimas, que o
buscavam para “conservar fiel algum amante ou o próprio marido, ou fazê-los
voltar a antigos sentimentos amorosos”, ou mesmo quando desejavam “fortuna para
qualquer empresa ou fim, ou mal de um inimigo”. Eram poucos os noticiários da
época que defendiam o líder negro. Mas o periódico ilustrado O Lobisomem, com
humor peculiar, imaginou uma conversa entre mãe e filha:
—
Mamãe, que história é esta que se vende a dois vinténs? Dizem que é lição aos
pais do mau exemplo das mães!
—
São cães que ladram à lua, são invejosos, que queres! Já chamam malvado a um
homem que era amigo das mulheres.
Várias
das filiadas, ou “filhas” de Juca Rosa compareceram para prestar depoimentos
durante o processo, e forneceram diversas informações sobre a associação
religiosa do Pai Quibombo. De acordo com os depoimentos, as “filhas” o
procuravam por livre e espontânea vontade, na maioria das vezes para resolverem
problemas amorosos. Várias testemunhas confirmaram sua crença no poderio de
Rosa, acreditando que ele conseguiria da sorte tudo o que desejasse. As
seguidoras se filiavam à sua associação ou “mesa” por meio de um cerimonial que
envolvia diversos rituais, música e dança, e um juramento de fidelidade ao
“chefe das macumbas” do Rio de Janeiro. A macumba em questão não era mais que
um instrumento musical de pau riscado (algo semelhante ao reco-reco), tocado
nas noites de festa comandadas por Juca. As filiadas também reconheciam que,
após o juramento, Rosa passava a ser o senhor de suas almas e corpos. Além de
curas e conselhos, era capaz de conseguir para elas amantes ricos, assim como
poderia também castigar os homens que as tratassem mal – muitos dos quais
também participavam dos rituais conduzidos pelo Pai. Estes castigos viriam em
diferentes formas: desde “bolos na cabeça” (um murro com os dedos em nó), ruína
financeira ou perda da virilidade, fazendo com que “não prestassem para mulher
alguma”, até a morte.
Pai
Quibombo foi julgado por estelionato, e não por exercer a feitiçaria, já que no
Código Criminal do Império não havia nenhuma lei proibindo essa atividade. As
depoentes do processo confirmaram que pagavam uma mensalidade a Juca Rosa. Além
disso, para trabalhos ou serviços extras, Rosa cobrava à parte. Uma consulta
podia custar até de 60 mil réis na década de 1860, preço bastante elevado para
a época – equivalente a uma consulta a um médico de renome. Várias das
filiadas, em sua maioria pobres, residindo em áreas de prostituição,
enfrentavam dificuldades para sobreviver e se sacrificavam para manter em dia
as contas com o Pai: faziam dívidas, vendiam objetos que não lhes pertenciam e
vários outros malabarismos para dar dinheiro a Rosa.
Emília
Carolina Mascarenhas, por exemplo, costureira de 28 anos, disse que procurou
Rosa pela primeira vez porque queria conservar a estima de um homem com quem
então vivia; e ouvira dizer “que Rosa tinha tanto poder como Deus”. Pagou 50
mil réis para que ele iniciasse o “trabalho necessário para o fim que ela tinha
em vista”. Já Leopoldina Fernandes Cabral, 23 anos, declarou que foi em busca
de Juca para “conservar a estima de um moço” por quem tinha “profunda afeição”,
pois soube que Rosa “tinha meios e poder para conseguir tudo que a ele se
pedia”. Acabou se filiando à associação, pagando uma mensalidade de 60 mil réis
e aceitando Rosa como “senhor de seu corpo e espírito”.
Denunciava-se
também a proteção que Rosa auferia de poderosos figurões da sociedade, os quais
teriam ligações com o misterioso Pai Quibombo. Em uma sociedade organizada com
base na escravidão e na inviolabilidade da vontade dos senhores brancos, o
debate surgido em torno do julgamento de um líder religioso afro-descendente,
que adquiriu fama e prestígio em plena capital do Império, tomou grandes
dimensões por ter ocorrido em um momento político decisivo: os anos 1870 e
1871, em que fervilhavam as discussões em torno da futura Lei do Ventre Livre,
e os destinos que se daria ao país após o fim do trabalho escravo. Esses
debates deixavam evidente o que se pensava em relação aos negros nos meios
intelectualizados do Brasil. A raça negra era, nesse contexto, considerada
inferior, ignorante e supersticiosa, embrutecida e muitas vezes perigosa; discutia-se
muito o perigo moral que os negros representariam junto a famílias brancas,
como também os danos que a herança africana causaria na formação da nação.
Para
muitos, Juca Rosa fazia parte dessa “escória”. Para outros, era considerado
feiticeiro poderoso, podendo curar males do espírito e do corpo. Fabricava e
vendia breves, um tipo de bolsa de mandinga ou patuá feito para evitar feitiços
ou proteger contra malefícios, usado junto ao corpo, num colar ao pescoço.
Serviam para proteção contra “qualquer outro feiticeiro que lhe fizesse
qualquer mal”, e também para “dar felicidade”, “dar fortuna” e “livrar de
quebranto”, como afirmou um seguidor seu.
Mas
grande parte da clientela de Pai Quibombo o procurava em busca de curas. Juca
afirmou em seu depoimento que embora “não fosse deus”, tinha respostas para
males físicos, como dores e ossos quebrados. A forma como tratava as moléstias
unia procedimentos rituais, manipulação de forças sobrenaturais e também
remédios feitos de ervas e líquidos, juntamente com rezas e acendimento de
velas para “Senhora Santa Ana” e “Senhor do Bonfim”, santos que cultuava.
Quanto à acusação de receber dinheiro de diversas mulheres, Rosa declarou que
elas o faziam por serem extremamente generosas. Reconheceu que teve muitas vezes
relações com as diversas filiadas, negando apenas que as tivesse deflorado.
Quando perguntado sobre os objetos encontrados em sua casa, como vidros de
medicamento, raízes, pandeiros e até tranças de cabelos, explicou: “num caso de
enfermidade ou de dificuldade no decorrer da vida sobre eles derrama o sangue
de um galo; esse ato, na sua crença, agradava aos espíritos ou às almas e era
praticado por ele em auxílio a qualquer de seus amigos que por enfermo infeliz
a ele recorriam”.
Sem
dúvida, as atividades de Juca Rosa se assemelhavam a várias práticas religiosas
afro-brasileiras. Mas não é possível explicar tais rituais como mera
continuidade de atividades religiosas de regiões da África, nem do candomblé
que florescia na Bahia, na mesma época, e para onde Juca Rosa fazia várias
viagens com o objetivo de “se limpar”. Certamente, em terras baianas, Rosa
consultava mestres e pais-de-santo, com o intuito de aprender a realizar
algumas de suas práticas.
Da
mesma maneira, a associação de Rosa também não pode ser classificada como algo
idêntico ao Candomblé ou a Umbanda que se conhece hoje, ainda que se possa
identificar algumas íntimas semelhanças, como o sacrifício de animais ou
cerimônias envolvendo canto, dança e transe espiritual. Estavam ali, na
associação de Juca Rosa, alguns dos primórdios do que seria o candomblé
carioca. Porém, a maioria de suas atividades era peculiaridades suas,
especialmente seu relacionamento com diversas mulheres.
Os
rituais de Rosa e seus seguidores devem ser encarados, assim, como próprios do
Rio de Janeiro nas últimas décadas da escravidão. Uma religião que tinha
elementos católicos e elementos de diferentes culturas africanas, sem ser nem
católica nem africana: era carioca, marcadamente negra, embora cultuada também
por brancos, pobres e ricos. Relacionava-se a objetivos imediatos, de
sobrevivência em um ambiente racista e hostil. No entanto, esse não era seu
único propósito, pois as pessoas também freqüentavam a casa de Rosa em busca de
mulheres bonitas, homens gentis e cheios de contos de réis, de preferência; de
companheiros e amigos entre pares; de curas para doenças ou infortúnios, ou
simplesmente por fé encarnada na figura carismática de José Sebastião da Rosa.
Juca
Rosa foi condenado a seis anos de prisão, apesar de ter contratado um famoso
advogado para defendê-lo, que fez diversas apelações, até mesmo ao imperador d.
Pedro II. Ficou na casa de correção da Corte até 1877. Quando saiu, teria se
tornado “guarda da municipalidade”, segundo relatos de memorialistas. Seu nome
continuou aparecendo na imprensa e em diversas publicações por muitos anos, ora
como memória de grandes personagens da história do Rio, ora como sinônimo de
feiticeiro negro e grande conquistador, cada vez que um “novo Juca Rosa”
aparecia e sacudia a cidade.
Gabriela dos Reis Sampaio, Revista de História da
Biblioteca Nacional, Edição nº 6, dezembro/2005.
Enviado por: Profº Marcelo Osório Costa, 3/7/16.
Juca Rosa, grande personagem representante do envolvimento e miscigenação com a cultura africana. Passou alguns meses na Bahia se instruindo nos mistérios da religião africana, e logo após fundou um terreiro bem-sucedido em bairro conhecido como Pequena África. Mesmo com uma extensa lista de crimes, obteve destaque como líder religioso, embora consideravam-no “capaz de enganar o próprio Deus”.
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