No ano de
1751, na Vila de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, capitania das Minas
Gerais, João da Rocha Lima enfrentava uma disputa judicial com o capitão
Domingos Rodrigues pela morte de seu escravo, o negro africano Salvador, de
nação Angola. Lima havia emprestado o escravo algemado e amarrado a Rodrigues
para que mostrasse a ele como chegar a um determinado quilombo. Esperava que
Salvador fosse devolvido nas mesmas condições. Não foi isto que ocorreu.
Testemunhas chamadas a depor contaram que Rodrigues, após realizar a diligência
ao quilombo, teria matado Salvador, entrando em seguida na vila carregando duas
cabeças cortadas, sendo uma delas a do africano. A sentença foi dada no ano
seguinte. Rodrigues foi condenado à prisão pelo prejuízo material causado a
João da Rocha Lima, que perdeu um escravo de sua propriedade.
Situações como
essa revelam uma realidade na qual a violência fazia parte do cotidiano de
milhares de homens e mulheres, escravos, libertos, livres, brancos, negros e
mestiços que habitavam as vilas e arraiais das Minas. Demonstram, também, a
manifestação do poder pessoal e abusos dos administradores, devido à posição
privilegiada no exercício dos cargos que ocupavam. O próprio sistema escravista
tinha a violência como elemento constitutivo e institucionalizado: pressupunha
manter o indivíduo como propriedade de outrem, devendo submeter-se ao poder e à
vontade de seu senhor. Como mercadoria, o escravo poderia ser vendido, trocado,
deixado de herança, castigado, preso e morto por seu proprietário ou pelo
Estado.
Com a
descoberta do ouro, no último quartel do século XVII, na região das Minas
Gerais, e do diamante, em 1729, nas proximidades da atual cidade de Diamantina,
a Coroa portuguesa passou a preocupar-se com o controle e vigilância das
regiões auríferas, implantando um aparato político-administrativo de cunho
fiscal e tributário para melhor arrecadar e submeter as populações ali
residentes às suas leis, visando garantir seu domínio sobre terras tão ricas.
À cobiça
da Coroa somou-se a sede de enriquecimento de homens e mulheres de todas as
condições sociais e de culturas diversas que, desde os primeiros anos do século
XVIII, se dirigiram para a região das Minas Gerais.
A política de
desarmamento da metrópole portuguesa para a capitania no período colonial foi
contraditória e, com o desenrolar do processo histórico, foi se tornando mais
rigorosa, até incluir, nas penalidades legais, senhores e homens brancos e
livres. Inicialmente, o Regimento de 1548 permitia o porte de armas – espada,
besta, espingarda, lança e chuço – aos habitantes da América portuguesa, para
sua defesa e segurança. Moradores brancos e proprietários eram obrigados a
adquirir armas nos armazéns régios, num prazo de um ano, o que indica a
expansão do mercado de armamentos para a burguesia européia. Era expressamente
proibida a confecção de armamentos e pólvora na Colônia, bem como, aos
ferreiros, latoeiros, funileiros e caldeiros, ensinar aos índios e escravos os
segredos do seu ofício.
O temor
residia no fato de que fossem feitas, internamente, armas de ferro, o que
parece ter ocorrido em meados do século XVIII, na região central do território
mineiro. Com a descoberta das minas, manteve-se apenas a nobres, residentes nas
cidades, o privilégio de portarem armas de fogo, como também espadas à cinta, mas
abriam-se exceções para os escravos que acompanhavam seus senhores em longas
jornadas pelos perigosos caminhos coloniais, povoados por quilombolas,
assaltantes, índios bravios e animais ferozes. Já na primeira década do século
XVIII, a ordem do governador d. Pedro de Almeida, em 1719, reforçava a
proibição a escravos (africanos e crioulos, isto é, nascidos no Brasil),
libertos negros e mestiços, que compunham o grosso da população, de usarem
pistolas, clavinas, bacamartes, espingardas, facas, punhais, espadas e adagas.
Com o
transcorrer do tempo, o crescimento da população em Minas Gerais, associado à
ocorrência de inúmeros motins e ao surgimento de dezenas de quilombos,
provavelmente contribuiu para aumentar o clima de insegurança e a
criminalidade. Espalhavam-se os conflitos armados, os roubos e as desavenças
entre os habitantes dos inúmeros arraiais e vilas da capitania. É possível
classificar os crimes em quatro tipos, de acordo com o bem jurídico ofendido:
contra o Estado, contra a ordem pública, contra a pessoa e contra a
propriedade. O porte ilegal de armas, embora enquadrando-se no crime contra o
Estado, de fato, poderia ser também considerado um crime contra a ordem pública
e contra a pessoa, ao favorecer – nos logradouros públicos, por exemplo – brigas,
ferimentos e assassinatos.
Diante dessa
realidade, os administradores passaram a incentivar e premiar a delação (marca
característica da legislação colonial portuguesa) e tornar mais rigorosas as
punições pelo uso ilegal de armas, prendendo escravos, libertos e livres
pobres, mandando açoitar publicamente cativos e alforriados, além de impor
penas pecuniárias, calculadas em oitavas de ouro, para libertar escravos da
prisão. Os comerciantes e as negras de tabuleiro – vendedoras ambulantes que
percorriam os caminhos e arraiais – eram constantemente acusados pelos
administradores de facilitar todo tipo de contrabando, incluindo ouro,
diamantes, armas, pólvora e balas para escravos e quilombolas. Os comerciantes,
livres e brancos, estavam na verdade interessados em vender seus produtos, a
despeito da condição social dos compradores. Era um comércio ilícito que, por
essa razão, poderia trazer maiores lucros para os comerciantes. Da mesma forma,
por circularem diariamente por ruas e caminhos, mantendo relações com toda a
população para vender suas mercadorias, muitas negras de tabuleiro aproveitavam
para se prostituir e lucrar com o comércio ilícito da venda de armamentos. Há
que se considerar, ainda, as relações pessoais e afetivas estabelecidas entre
vendedores e a sociedade, que interferiam no sucesso das transações.
A ameaça à
“tranqüilidade pública” foi aumentando e até os instrumentos de trabalho dos
escravos – como, por exemplo, os facões para corte de capim – passaram, com o
tempo, a representar um perigo e uma ameaça à ordem colonial escravista. Assim,
cientes dessa realidade e da impossibilidade de controle sobre a complexa
população mineira, o rei d. João V decretou uma ordem régia, em 1722, ampliando
a proibição a todas as pessoas, de qualquer condição social, fossem negros,
mulatos, brancos, escravos, alforriados, pobres ou ricos. Ninguém podia “trazer
consigo faca, adaga, punhal, sovetão ou estoque ainda que seja de marca,
thezoura grande, nem outra qualquer arma, ou instrumento se com a ponta se puder
fazer ferida penetrante, nem trazer pistolas, ou armas de fogo mais curtas de
que a Ley permite”.
A
legislação proibitiva do porte de armas foi se repetindo ao longo do século
XVIII, fato que demonstra o seu não-cumprimento. Se, por um lado, ter armas e
contar com uma guarda pessoal de escravos armados era símbolo de poder pessoal
e demonstração de prestígio para os senhores, no confronto com outros
proprietários, por outro, para cativos e camadas pobres da população, isso
poderia significar a manutenção da liberdade e sobrevivência. Deve-se
considerar que as armas confeccionadas de forma mais artesanal, como porretes e
azagaias (lança curta de arremesso, muito comum em África), deveriam ser mais
usadas por escravos e pela população mais empobrecida, enquanto a espingarda de
pederneira e as pistolas eram usadas pelos nobres, militares e senhores.
Havia muitos
grupos sociais interessados no comércio ilícito de armas, entre eles
administradores – militares e camaristas –, comerciantes, escravos, senhores,
quilombolas e criminosos. Essa rede de relações inviabilizou o sucesso da
política de desarmamento implementada por Portugal para a capitania das Minas e
contribuiu para o crescimento da violência ao armar os vários segmentos da
população numa região aurífera, de intensa disputa por ricas terras. Para
desespero das autoridades, os interesses pessoais predominaram sobre os
interesses régios, identificados, naquela realidade, com os interesses
públicos. Isso não impediu a continuidade da exploração colonial sobre as Minas
Gerais, mas certamente a dificultou e a desgastou, ao longo do Setecentos.
Liana
Maria Reis, Revista de História da Biblioteca Nacional, Edição nº 4, outubro/2005.
Enviado por: Profº Marcelo Osório
Costa, 3/7/16.
Após ler o texto, podemos inferir que desde a época da escravidão o destino de nossas vidas pode depender do próximo, o qual nunca sabemos a real intenção. Muitas vezes, obrigados a fazer algo que não corresponde ao interesse alheio, e sim ao de um superior, que usa da violência para empregar a sua vontade e desejo perante os outros.
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