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domingo, 3 de julho de 2016

O arsenal da macumba.

“Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis e ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública”, como diz o artigo 157 do Código Penal de 1890, eram práticas condenadas pela lei e pela própria crença da sociedade no Brasil republicano. 
Desde a promulgação deste Código Penal, e ao longo do século XX, inúmeros acusados de serem maus espíritas, macumbeiros ou pais e mães-de-santo foram levados à prisão em quase todos os estados da federação. No Rio de Janeiro não foi diferente. Mas quem eram os praticantes do espiritismo, da magia e de seus sortilégios perseguidos pela polícia em uma cidade cuja crença em espíritos e feitiçarias ocorria entre pessoas de todas as classes? Como eram descobertos?
Uma coisa é certa: se há crença na feitiçaria, há o combate aos feiticeiros. Portanto, os processos criminais nos quais muitas pessoas foram acusadas de praticar o crime previsto no artigo 157 pressupõem que a sociedade brasileira acreditava na feitiçaria. O primeiro passo para combater o uso de poderes sobrenaturais era, portanto, a acusação daqueles que supostamente usavam esses poderes para produzir malefícios, que “praticavam a magia e seus sortilégios”. Os processos criminais eram formas institucionais criadas para disciplinar as acusações, julgar se o indivíduo era um feiticeiro ou charlatão e conferir a devida pena ao culpado ou a merecida liberdade ao inocente.
A denúncia era o primeiro passo desses processos criminais comuns a partir do fim do século XIX. A acusação de fato é ponto fundamental para que o processo fosse instaurado. O código de 1890 estimulou de maneira decisiva a denúncia de associações religiosas "quando elas serviam para fins ilícitos". Sem denúncia não havia processo.
Os processos de maneira geral revelam a participação de toda a organização jurídica, juízes, advogados, delegados e promotores nos assuntos da magia, criando uma perícia especializada que examinava os fetiches, feitiços e sortilégios e os distinguia da magia benéfica. Essa perícia era feita por policiais que, como oráculos, diziam se o réu era feiticeiro perigoso ou legítimo pai-de-santo.
Nas colônias inglesas da África era diferente. Uma análise do sistema de condenação e regulação de acusações nos processos de lá revela que o objetivo central da lei de Supressão à Feitiçaria da antiga colônia britânica Rodésia (atual Zimbábue) – contemporânea ao nosso código penal de 1890 –, era combater a própria crença na feitiçaria. Em seu artigo três, a lei da Rodésia considerava culpado de ofensa quem apontasse outra pessoa como feiticeiro ou imputasse a ela o uso de meios não-naturais para causar mal ou dano a pessoa, animal ou propriedade. O castigo ia de multa até 100 libras esterlinas, prisão até três anos, ou castigos corporais não superiores a vinte chibatadas.
Para os povos dominados pelos britânicos, a lei era considerada totalmente estranha uma vez que, para eles, a feitiçaria era vista como tão natural e verdadeira quanto o cair da chuva no verão.
Se os shona, grupo étnico habitante da então Rodésia, não podiam aceitar essa lei inglesa, nossos magistrados, promotores e testemunhas, sem falar nos próprios acusados, tampouco teriam podido concebê-la. Como os shona, todos os envolvidos em nossos processos criminais acreditavam na magia e consideravam um dever coibir os abusos. Se os colonizadores ingleses visaram suprimir a crença na feitiçaria, a elite brasileira, nela emaranhada, procurava administrá-la satisfatoriamente.
Os processos criminais que foram instaurados a partir do artigo 157 do Código Penal de 1890 revelaram o fascínio que essa crença exercia em toda a nossa sociedade. Uma das demonstrações desse fascínio, desse verdadeiro “vício” na acepção de João do Rio (1906), são as inúmeras coleções de “apetrechos” apreendidos pela polícia e que se encontram em museus brasileiros. Especialmente a coleção Perseverança, hoje sob a guarda do Instituto Histórico Geográfico de Alagoas, tem uma característica particular, pois revela a participação de grupos ligados à política local no combate aos “feiticeiros”.
Euclides Malta, que governou com mãos de ferro o estado de Alagoas foi acusado de pertencer aos xangôs, tradição religiosa africana preservada especialmente nesse estado e em Pernambuco. Os terreiros por ele freqüentados foram violentamente atacados em 1912 numa ação popular: o povo, farto das manipulações do governador, invadiu esses terreiros, quebrando os atabaques e até ferindo e matando uma das  mãe-de-santo.
No Rio de Janeiro, peritos da polícia eram chamados a opinar sobre os materiais apreendidos e os classificaram como de “magia negra”, parte do “arsenal dos bruxos”, “objetos próprios para a exploração do falso espiritismo”, “objetos de bruxaria”, “coisas necessárias à mise-em-scène da macumba e candomblé”, “objetos próprios para fazer o mal, ebó (embó)”.
Os artefatos recolhidos pela polícia em “casas de fazer macumba”, em terreiros e centros espíritas definidos como “antros de bruxaria”, foram expostos no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro e constituíam a prova material de que o feitiço existia. O Museu da Polícia contava a história da repressão àqueles que praticavam a bruxaria, usando poderes sobrenaturais para produzir o mal. A bruxaria, na versão do nosso sistema de explicação do infortúnio, era plenamente aceita.
A coleção classificada como “coleção Afro-Brasileira, jogos, entorpecentes, atividades subversivas, falsificações de notas e moedas, mistificação” está registrada sob inscrição nº.1, de 5 de maio de 1938, no Livro Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do antigo Instituto do Patrimônio Artístico Nacional (IPHAN). As peças antes de seu tombamento em 1938 encontravam-se na Seção de Tóxicos, Entorpecentes e Mistificação da Primeira Delegacia Auxiliar no “Museu de Magia Negra”. A delegacia que reprimia e perseguia os feiticeiros era a guardiã daquilo que os peritos da polícia definiam como objetos de bruxaria.  Essa materialização da bruxaria ainda é vista com desconfiança – não faltaram pessoas para dizer que aquelas coisas eram perigosas, estavam “carregadas”, “pesadas” e era arriscado desvendar sua origem.
Depois de tombados, os objetos passaram a fazer parte, em 1945, do Museu de Criminologia, um museu científico e de arte popular que faz parte do Conselho Internacional de Museus, registrado como Museu Científico do Departamento de Segurança Pública. O museu tem uma coleção de armas, bandeiras nazistas, pertences de presos políticos. A “coleção de magia negra” foi organizada pelo primeiro diretor da casa que, para tanto, utilizou-se de bibliografia sobre o tema das religiões afro-brasileiras sobretudo Artur Ramos, Roger Bastide e Edison Carneiro.
Em 1979, os objetos da bruxaria no Museu da Polícia estavam dispostos como em um terreiro, com as imagens dos exus separadas das dos outros orixás, os atabaques separados das imagens e os “trabalhos para fechar caminhos” em estante separada “dos trabalhos para abrir caminhos”. Afinal, se estivessem dispostos de outra maneira perderiam seu sentido de artefatos de magia maléfica, pois é a ordenação mágica que determina sua função de produzir o mal ou o bem. Naquela altura as pessoas iam ao museu fazer a sua “fezinha” e depositavam moedas e flores ao pé das imagens. Para os visitantes do Museu aquelas imagens e itens rituais como velas, vestimentas e capacetes ganhavam ainda mais poder e força por ter pertencido a poderosos feiticeiros.
Já em 2005, a coleção de “magia negra” estava fechada à visitação pública. A coleção do Museu da Polícia parece ter sido danificada durante um incêndio, tendo sido colocada na reserva técnica, onde o acesso a ela era proibido. O que significa o desaparecimento da coleção dos olhos do público? Arrisco duas hipóteses. A primeira é que houve nos anos 1970 uma demanda por parte de alguns movimentos políticos para devolver as peças para seus donos originais. Essa demanda foi dificultada porque aqueles itens expostos no Museu eram a prova viva de que a feitiçaria existia e estavam “carregados”. Mas quem sabe elas não teriam assim mesmo sido encaminhadas à alguma instituição religiosa? Também é possível especular que o sumiço da coleção do Museu da Polícia tenha algo a ver com a força crescente das religiões evangélicas no Rio de Janeiro, inimigas mortais da feitiçaria, que têm crentes em todas as esferas da sociedade, até na policial.
Yvonne Maggie, Revista de História da Biblioteca Nacional, Edição nº 6, dezembro/2005.
Enviado por: Profº Marcelo Osório Costa, 3/7/16.

2 comentários:

  1. O texto deixa evidente o preconceito religioso em séculos passados, que interferia inclusive no âmbito cultural, como na coleta de objetos nos museus da época.

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  2. O preconceito citado por Aline permanece, atualmente ainda não há uma aceitação social ,algumas religiões que deveriam "pregar" o respeito, criticam, alimentando o preconceito religioso.

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Comentários