“Praticar
o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para
despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis e ou
incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública”, como diz o
artigo 157 do Código Penal de 1890, eram práticas condenadas pela lei e pela
própria crença da sociedade no Brasil republicano.
Desde
a promulgação deste Código Penal, e ao longo do século XX, inúmeros acusados de
serem maus espíritas, macumbeiros ou pais e mães-de-santo foram levados à
prisão em quase todos os estados da federação. No Rio de Janeiro não foi
diferente. Mas quem eram os praticantes do espiritismo, da magia e de seus
sortilégios perseguidos pela polícia em uma cidade cuja crença em espíritos e
feitiçarias ocorria entre pessoas de todas as classes? Como eram descobertos?
Uma
coisa é certa: se há crença na feitiçaria, há o combate aos feiticeiros.
Portanto, os processos criminais nos quais muitas pessoas foram acusadas de
praticar o crime previsto no artigo 157 pressupõem que a sociedade brasileira
acreditava na feitiçaria. O primeiro passo para combater o uso de poderes
sobrenaturais era, portanto, a acusação daqueles que supostamente usavam esses
poderes para produzir malefícios, que “praticavam a magia e seus sortilégios”.
Os processos criminais eram formas institucionais criadas para disciplinar as
acusações, julgar se o indivíduo era um feiticeiro ou charlatão e conferir a
devida pena ao culpado ou a merecida liberdade ao inocente.
A
denúncia era o primeiro passo desses processos criminais comuns a partir do fim
do século XIX. A acusação de fato é ponto fundamental para que o processo fosse
instaurado. O código de 1890 estimulou de maneira decisiva a denúncia de
associações religiosas "quando elas serviam para fins ilícitos". Sem
denúncia não havia processo.
Os
processos de maneira geral revelam a participação de toda a organização
jurídica, juízes, advogados, delegados e promotores nos assuntos da magia,
criando uma perícia especializada que examinava os fetiches, feitiços e
sortilégios e os distinguia da magia benéfica. Essa perícia era feita por
policiais que, como oráculos, diziam se o réu era feiticeiro perigoso ou
legítimo pai-de-santo.
Nas
colônias inglesas da África era diferente. Uma análise do sistema de condenação
e regulação de acusações nos processos de lá revela que o objetivo central da
lei de Supressão à Feitiçaria da antiga colônia britânica Rodésia (atual
Zimbábue) – contemporânea ao nosso código penal de 1890 –, era combater a
própria crença na feitiçaria. Em seu artigo três, a lei da Rodésia considerava
culpado de ofensa quem apontasse outra pessoa como feiticeiro ou imputasse a
ela o uso de meios não-naturais para causar mal ou dano a pessoa, animal ou
propriedade. O castigo ia de multa até 100 libras esterlinas, prisão até três
anos, ou castigos corporais não superiores a vinte chibatadas.
Para
os povos dominados pelos britânicos, a lei era considerada totalmente estranha
uma vez que, para eles, a feitiçaria era vista como tão natural e verdadeira
quanto o cair da chuva no verão.
Se
os shona, grupo étnico habitante da então Rodésia, não podiam aceitar essa lei
inglesa, nossos magistrados, promotores e testemunhas, sem falar nos próprios
acusados, tampouco teriam podido concebê-la. Como os shona, todos os envolvidos
em nossos processos criminais acreditavam na magia e consideravam um dever
coibir os abusos. Se os colonizadores ingleses visaram suprimir a crença na
feitiçaria, a elite brasileira, nela emaranhada, procurava administrá-la
satisfatoriamente.
Os
processos criminais que foram instaurados a partir do artigo 157 do Código
Penal de 1890 revelaram o fascínio que essa crença exercia em toda a nossa
sociedade. Uma das demonstrações desse fascínio, desse verdadeiro “vício” na
acepção de João do Rio (1906), são as inúmeras coleções de “apetrechos”
apreendidos pela polícia e que se encontram em museus brasileiros.
Especialmente a coleção Perseverança, hoje sob a guarda do Instituto Histórico
Geográfico de Alagoas, tem uma característica particular, pois revela a
participação de grupos ligados à política local no combate aos “feiticeiros”.
Euclides
Malta, que governou com mãos de ferro o estado de Alagoas foi acusado de
pertencer aos xangôs, tradição religiosa africana preservada especialmente
nesse estado e em Pernambuco. Os terreiros por ele freqüentados foram
violentamente atacados em 1912 numa ação popular: o povo, farto das
manipulações do governador, invadiu esses terreiros, quebrando os atabaques e
até ferindo e matando uma das mãe-de-santo.
No
Rio de Janeiro, peritos da polícia eram chamados a opinar sobre os materiais
apreendidos e os classificaram como de “magia negra”, parte do “arsenal dos
bruxos”, “objetos próprios para a exploração do falso espiritismo”, “objetos de
bruxaria”, “coisas necessárias à mise-em-scène da macumba e candomblé”,
“objetos próprios para fazer o mal, ebó (embó)”.
Os
artefatos recolhidos pela polícia em “casas de fazer macumba”, em terreiros e
centros espíritas definidos como “antros de bruxaria”, foram expostos no Museu
da Polícia Civil do Rio de Janeiro e constituíam a prova material de que o
feitiço existia. O Museu da Polícia contava a história da repressão àqueles que
praticavam a bruxaria, usando poderes sobrenaturais para produzir o mal. A
bruxaria, na versão do nosso sistema de explicação do infortúnio, era
plenamente aceita.
A
coleção classificada como “coleção Afro-Brasileira, jogos, entorpecentes,
atividades subversivas, falsificações de notas e moedas, mistificação” está registrada
sob inscrição nº.1, de 5 de maio de 1938, no Livro Tombo Arqueológico,
Etnográfico e Paisagístico do antigo Instituto do Patrimônio Artístico Nacional
(IPHAN). As peças antes de seu tombamento em 1938 encontravam-se na Seção de
Tóxicos, Entorpecentes e Mistificação da Primeira Delegacia Auxiliar no “Museu
de Magia Negra”. A delegacia que reprimia e perseguia os feiticeiros era a
guardiã daquilo que os peritos da polícia definiam como objetos de
bruxaria. Essa materialização da bruxaria ainda é vista com desconfiança
– não faltaram pessoas para dizer que aquelas coisas eram perigosas, estavam
“carregadas”, “pesadas” e era arriscado desvendar sua origem.
Depois
de tombados, os objetos passaram a fazer parte, em 1945, do Museu de
Criminologia, um museu científico e de arte popular que faz parte do Conselho
Internacional de Museus, registrado como Museu Científico do Departamento de
Segurança Pública. O museu tem uma coleção de armas, bandeiras nazistas,
pertences de presos políticos. A “coleção de magia negra” foi organizada pelo
primeiro diretor da casa que, para tanto, utilizou-se de bibliografia sobre o
tema das religiões afro-brasileiras sobretudo Artur Ramos, Roger Bastide e
Edison Carneiro.
Em
1979, os objetos da bruxaria no Museu da Polícia estavam dispostos como em um
terreiro, com as imagens dos exus separadas das dos outros orixás, os atabaques
separados das imagens e os “trabalhos para fechar caminhos” em estante separada
“dos trabalhos para abrir caminhos”. Afinal, se estivessem dispostos de outra
maneira perderiam seu sentido de artefatos de magia maléfica, pois é a
ordenação mágica que determina sua função de produzir o mal ou o bem. Naquela
altura as pessoas iam ao museu fazer a sua “fezinha” e depositavam moedas e
flores ao pé das imagens. Para os visitantes do Museu aquelas imagens e itens
rituais como velas, vestimentas e capacetes ganhavam ainda mais poder e força
por ter pertencido a poderosos feiticeiros.
Já
em 2005, a coleção de “magia negra” estava fechada à visitação pública. A coleção
do Museu da Polícia parece ter sido danificada durante um incêndio, tendo sido
colocada na reserva técnica, onde o acesso a ela era proibido. O que significa
o desaparecimento da coleção dos olhos do público? Arrisco duas hipóteses. A
primeira é que houve nos anos 1970 uma demanda por parte de alguns movimentos
políticos para devolver as peças para seus donos originais. Essa demanda foi
dificultada porque aqueles itens expostos no Museu eram a prova viva de que a
feitiçaria existia e estavam “carregados”. Mas quem sabe elas não teriam assim
mesmo sido encaminhadas à alguma instituição religiosa? Também é possível
especular que o sumiço da coleção do Museu da Polícia tenha algo a ver com a
força crescente das religiões evangélicas no Rio de Janeiro, inimigas mortais
da feitiçaria, que têm crentes em todas as esferas da sociedade, até na
policial.
Yvonne Maggie, Revista de História da Biblioteca
Nacional, Edição nº 6, dezembro/2005.
Enviado por: Profº Marcelo Osório Costa, 3/7/16.
O texto deixa evidente o preconceito religioso em séculos passados, que interferia inclusive no âmbito cultural, como na coleta de objetos nos museus da época.
ResponderExcluirO preconceito citado por Aline permanece, atualmente ainda não há uma aceitação social ,algumas religiões que deveriam "pregar" o respeito, criticam, alimentando o preconceito religioso.
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