“Eu tenho uma nhanhazinha/ De quem sou sempre
moleque/ Ela vê-me estar ardendo/ E não me abana c’o leque.” Esta é a letra de
um antigo lundu, gênero musical que estudiosos apontam como o avô do samba.
Outra composição diz o seguinte: “Se sinhá quer me dar/ eu cá estou pra
apanhar/ vem ferir vem matar/ teu negrinho aqui está/ mas depois de apanhar/
quer fadar com iaiá”. Os versos, como se vê, revelam uma curiosa mistura de
valores antagônicos: sadismo e amorosidade, violência e desejo.
No segundo lundu, o negro
propõe à sua senhora um pacto através do qual sua posição de subserviência e
inferioridade como escravo se atenua no momento em que revela seu interesse
final de “fadar”, expressão que remete à dança do fado, mas que também pode ter
conotação sexual. A violência da escravidão é ao mesmo tempo suavizada pelo
discurso amoroso, transformando o maltratado em cúmplice do próprio algoz. O
negro aqui não apanha de forma passiva. Ele provoca e, com isso, é capaz de
revelar o percurso que vai da dor ao prazer, de seduzido a sedutor.
Esse gênero musical tem uma
longa história entre nós. A primeira música gravada no Brasil, em 1902, foi o
lundu Isto é bom, de autoria de Xisto Bahia (1841-94), interpretado pelo cantor
Baiano (1870-1944). A essa altura, o lundu já se havia popularizado como
atração humorística, executada ao violão pelos palhaços de circo. Na segunda metade
do século XIX, ou seja, algumas décadas antes do advento da indústria
fonográfica, o lundu já exercera, também, papel importante no teatro de
revista, gênero dramático que acabou por incorporar personagens, tipos e
criações musicais relacionados às camadas populares.
O lundu é, no entanto, mais
antigo que isso. Sua origem remonta ao século XVIII, quando passou a fazer
sucesso tanto no Brasil quanto em Portugal, paralelamente à difusão das
modinhas. O termo lundu, entretanto, surge apenas no século XIX, mais
especificamente a partir de 1834, quando se inicia a impressão musical no
Brasil. A partir do comércio de partituras, surge a demanda pela diferenciação
de gêneros na própria música brasileira, e o lundu aparece para designar
canções com características bastante definidas e reconhecidas por compositores,
editores e público.
Além da malícia e da
sensualidade, já presentes em algumas modinhas, o lundu se distingue por
expressar-se através do ritmo sincopado, originário da cultura africana, e pelo
tom humorístico das letras. Ao longo do período que vai da segunda metade do
século XVIII ao início do século XX, passou por transformações significativas
no que diz respeito à temática. A princípio, o gênero se distinguia por unir o
humor a referências ao universo afro-brasileiro. Nos lundus gravados no início
do século XX, entretanto, o que se apresenta são textos humorísticos de
assuntos variados.
Segundo o pesquisador José
Ramos Tinhorão, a palavra lundu tem sua origem em calundu, dança ritual
africana às vezes também chamada de lundu. O termo está, portanto, relacionado
aos batuques dos negros, e é compreendido inicialmente como dança: uma
combinação entre a umbigada africana e o fandango europeu. Mas logo o
ritmo da dança vai dar origem ao lundu-canção. Este gênero deve sua difusão em
Portugal ao poeta Domingos Caldas Barbosa, que o tornou popular na metrópole
quando foi estudar na Universidade de Coimbra, em 1763.
Filho de um português com
sua escrava trazida de Angola, o poeta, nascido em 1740, passou a infância no
Rio de Janeiro como um dos inúmeros mestiços de uma população que assistia aos
processos de modernização e à emergência de novas formas de divertimento no
espaço urbano. Embora tenha sido Domingos Caldas o divulgador do lundu em
Portugal, não é possível afirmar que todas as canções que tocava com sua viola
de arame eram de sua autoria. Há a hipótese de que o poeta as tenha recolhido
no Brasil nas diversas manifestações de cunho popular.
Domingos Caldas Barbosa foi
um dos fundadores da Nova Arcádia, em Lisboa, no ano de 1790. No primeiro
volume de sua obra Viola de Lereno, o poeta se apresenta como o pastor Lereno
Selinuntino. Caldas é, portanto, um dos representantes da estética árcade,
estilo literário predominante na segunda metade do século XVIII que contrasta
inteiramente com os lundus que apresenta. Enquanto o arcadismo (ou
neoclassicismo) se inspirava na lendária região da Grécia Antiga dominada pelo
deus Pari e habitada por pastores, os lundus encenados por Domingos Caldas
traziam elementos da cultura brasileira. Consta que, nos próprios encontros da
Nova Arcádia, o tocador de viola comportava-se de forma transgressora, ao
cantar os maliciosos lundus após a leitura das peças compostas dentro dos
rigores neoclássicos. Em função disso, no segundo volume de Viola de Lereno,
publicado 26 anos após a morte do poeta, desaparece o pastor e surge a figura
do negrinho ou moleque.
Há singularidades nos lundus
do final do século XVIII, principalmente naqueles atribuídos a Domingos Caldas,
que merecem atenção especial no que diz respeito às letras. Estas colocam em
cena aquele tipo de escravo que se dirige à sua senhora chamando-a
carinhosamente de “sinhá”, “nhanhá’ ou “iaiá”.
O primeiro aspecto que pode
ser percebido diz respeito ao caráter ilícito da relação encenada pelo lundu,
bem como à desigualdade entre os amantes, já que os personagens envolvidos são
o cativo e sua ama. O lundu é, portanto, uma forma de canção que traz
para o centro da atenção da metrópole portuguesa e da Colônia o negro escravo,
que subverte e desafia a rigidez dos valores sociais vigentes. Isso através de
um discurso amoroso que, ao desviar-se do discurso presente nas modinhas,
reelabora elementos advindos da própria cultura escravocrata.
Ressalte-se, em primeiro
lugar, que as relações entre senhores e escravas são amplamente documentadas
devido, sobretudo, aos inúmeros nascimentos de filhos de negras oriundos desses
relacionamentos. Entretanto, pouco se registra das relações entre as senhoras,
donzelas ou casadas, com seus escravos. E é justamente essa forma de contato
que predomina nos lundus do século XVIII, através do discurso negro masculino.
Nesse sentido, o lundu pode ser interpretado como a evidência de um aspecto
censurado da cultura colonial.
Mas há mais: em alguns casos,
bastante significativos, o lundu coloca em cena um jogo de sedução entre negro
e senhora em que a temática da violência surge de forma bastante marcante. No
segundo volume de Viola de Lereno, de Domingos Caldas, apresentam-se estrofes
tais como “Eu tenho uma nhanhazinha/ Que eu não a posso entender/ Depois de me
ver penar/ Só depois diz que me quer”. Registra-se aqui o uso do diminutivo no
tratamento à senhora, carinhosamente coloquial e que, por si só, demarca um
campo de intimidade que subverte a relação de poder. Mas, ao mesmo tempo, o
interesse da senhora é apresentado como algo ambivalente, do qual participam
simultaneamente desejo e sadismo.
O lundu no século XVIII
pode, portanto, ser visto como uma cantoria que permite vir à tona a temática
da violência da escravidão escamoteada pela superfície do discurso amoroso, da
linguagem dengosa e da leveza marcada por uma forma de humor acentuada pelas
rimas. Há uma constante ambivalência entre um sofrimento vivenciado em função
da falta de reciprocidade amorosa e a dor causada pela própria condição de
escravo. Ambivalência que vai sendo sublinhada ao fim de cada estrofe em que o
negro repete o refrão: “Ai céu!/ Ela é minha iaiá/ O seu moleque sou
eu”.
O lundu não coloca em cena
apenas relações entre negros e senhoras, mas estabelece um jogo de sedução com
os públicos português e brasileiro que têm no humor, na jocosidade, uma forma
de lidar com a problemática da escravidão. É pelo viés da temática amorosa, já
familiar através da modinha, à qual se acrescenta o humor como ingrediente, que
a platéia pode entrar em contato com uma ambivalência que reside tanto na
amorosidade encenada quanto em sua própria relação com a realidade
escravocrata.
Na coletânea As modinhas do
Brasil – pertencente ao acervo da Biblioteca da Ajuda, de Lisboa, e revelada ao
público em 1968 pelo pesquisador Géhard Behágue – encontra-se outra canção em
que a união entre sedução e violência adquire novas nuanças. Trata-se de Os me
deixas que tu dás em que o negro diz à senhora: “Muito gosto nhanhazinha /de
andar bulindo contigo/ quando vejo que comigo/ tu estás enfadadinha/ ficas tão
muganguerinha/ que muito me satisfaz/ e se mando que te vás/ depois te torno a
prender/ é somente para ver/ os me deixas que tu dás”.
Este lundu parece colocar no
centro da atenção a fragilidade feminina da senhora, de forma que se dá uma
total inversão na relação de poder. É o desejo do negro que se sobrepõe ao de
“nhanhazinha”. O negro explicita a rejeição da sinhá, mas, ao mesmo tempo, se
sente atraído por esta rejeição, pela insatisfação da senhora diante de seu
assédio. Por outro lado, os diminutivos “enfadadinha” e “mugangueirinha”
(aquela que faz “mugangas”, ou caretas) permitem perceber que o escravo
interpreta a negativa como parte de um jogo de sedução. Além disso, o negro
demonstra lançar mão não só do assédio, de quem “anda bulindo”, mas de força
física, ao “prender”. O escravo exerce força sobre a senhora, de quem dispõe
como a um objeto, em um jogo sádico sublinhado pela circularidade do lundu, que
começa e termina com o mesmo verso, como a reproduzir a forma repetitiva com
que se dá a tortura à sinhá.
Essas formas de lundu
permitem falar, através do discurso do negro, de outro tabu. Torna-se tema a
própria sexualidade da mulher branca, que, de uma forma ou de outra, é
representada como participante de jogos de sedução com seus escravos. Está em
jogo, dessa forma, um desafio à própria moral vigente na época, principalmente
no que diz respeito ao papel da mulher na sociedade. O humor dos lundus advém,
em parte, das cenas transgressoras e maliciosas que apresentam, em estrofes
sempre marcadas pela leveza e pela graciosidade. O surpreendente e curioso é
que estas formas consigam trazer à tona questões complexas como a escravidão e
a violência, temas que encontram no tom humorístico o viés possível de
visibilidade, ainda no século XVIII.
É então nos lundus que se
expõem essas ambivalências amorosas, em que violência e sedução se tornam
cúmplices e indissociáveis. A receptividade que essa forma de canção encontra
em Portugal leva à compreensão do lundu como evidente traço diferencial entre
metrópole e Colônia. Ao mesmo tempo, é através dele que a Colônia elabora
criativamente as contradições da tradição escravocrata e ensaia o
reconhecimento do papel crucial da africanização na cultura brasileira.
Tereza
Virginia de Almeida, Revista de História da Biblioteca Nacional, Edição nº 8,
março/2006.
Enviado
por: Profº Marcelo Osório Costa,6/7/16.
Lundu, poucos conhecem, mas é a base do nosso samba. Através do lundu e de um viés da esfera do amor e da sedução, que se vê na modinha, e acrescenta o humor como elemento artístico e existencial faz com que as pessoas entrem em contato com uma ambivalência que reside tanto na amorosidade encenada quanto em sua própria relação com a realidade escravocrata. É importante para perceber a relação entre Portugal-Brasil, servo-escravo, negro-branco, amor-sedução fazendo parte desse estilo artístico.
ResponderExcluir"Esse gênero musical tem uma longa história entre nós. A primeira música gravada no Brasil, em 1902, foi o lundu"
ResponderExcluirA música é uma arte que mexe com nossos sentidos e que nos encanta, cada um de um jeito . Nos ajuda a expressar e ter paz. Mas porque paz? Porque a música nos passa tranquilidade e nos deixa bem consigo mesmo.
A linguagem musical , deveria ser obrigatória em todas as escolas , porque ajuda o aluno a se desenvolver . A música é um resumo de tds as matérias . Nas notas a matemática, nas frases melódicas o português , a história e a geografia é vista no seu passado, a física no som ... então a música deveria ser ensinada . Ela nos traz todo esse conhecimento, desenvolve o intelecto e nos deixa em paz.
Realmente é um gênero pouco conhecido, retrata claramente a vida da população principalmente negra citada nos versos do texto, e as condições de vida que lhe eram habituadas. Demonstra emoções, e expõe tabus da época como o papel da mulher na sociedade.
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