Em termos
mundiais, o tema da infância conquistou adeptos entre historiadores
profissionais desde a década de 1960. Um pioneiro nessa pesquisa foi Philippe
Ariès, que traçou um quadro fascinante a respeito da condição da criança no
Antigo Regime, sugerindo que o sentimento e valores de nossa época não se
aplicam ao passado. No Brasil, investigações semelhantes a essa começaram a ser
registradas nos anos 1980, embora haja casos isolados, como o de Gilberto Freyre,
que no clássico Casa-grande & senzala (1936) traça um interessante painel
da meninice senhorial e escrava, recorrendo a fontes documentais inéditas.
Um
dos feitos dessa história social da infância foi o de descobrir que o abandono
de crianças, sobretudo de recém-nascidos, tem raízes antigas. Na Europa, tal
prática foi abundantemente registrada na literatura clássica. No final da
Idade Média, principalmente após a Peste Negra (1348), o problema se agravou. O
número de bebês pobres e órfãos se multiplicou, exigindo uma intervenção das
instituições dos burgos e cidades medievais. Em Portugal, antes mesmo da
colonização do Brasil, câmaras municipais e hospitais, como as Santas Casas da
Misericórdia, começaram a criar formas de auxílio destinadas às crianças
abandonadas. Por volta de 1550, os jesuítas dão início, no Novo Mundo, a uma
ação pioneira junto às crianças indígenas, criando Colégios de Órfãos para
receber curumins sem família.
Nos
séculos seguintes, o problema se generaliza entre a população livre das vilas e
cidades coloniais. Várias câmaras coloniais, conforme ocorreu nas
capitanias da Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais, começam a pagar famílias
para acolher os denominados enjeitados ou expostos. Os hospitais, por sua vez,
como se registra na Santa Casa de Salvador (1726) e na do Rio de Janeiro
(1738), importam as portuguesas rodas dos expostos – tonéis de madeira
giratórios, presos no meio da parede, unindo a rua ao interior do imóvel e
preparados para acolher recém-nascidos abandonados.
Como é
possível perceber, tratava-se de serviços assistenciais complexos e que podiam
se estender até os meninos e meninas completarem sete anos de idade, quando
então deviam ser empregados em serviços remunerados ou em troca de alimento e
moradia. O abandono dizia respeito, fundamentalmente, às crianças brancas e
pardas, de ambos os sexos. Além dos órfãos pobres, havia aqueles nascidos fora
do casamento – em decorrência de relações fortuitas ou incestuosas, assim como
de adultérios –, que eram deixados nas calçadas, entregues a vizinhos, ou ainda
enviados a hospitais. As mães escravas raramente abandonavam os filhos, pois
estes eram propriedades dos senhores, que encaravam no gesto uma forma de fuga
e a perda de uma valiosa propriedade.
Um aspecto
central dos estudos sobre a história da infância diz respeito ao “amor
materno”. As mulheres que abandonavam os filhos manifestariam desamor em
relação a eles, ou o gesto decorria de uma imposição de natureza econômica ou
moral? A questão é delicada, pois na sociedade colonial quase todas as mulheres
– na maior parte africanas ou destas descendentes – eram analfabetas, não
deixando por isso mesmo relatos a respeito de seus sentimentos; ademais, é
bastante provável que muitos bebês fossem órfãos, sendo enjeitados justamente
por não terem mães que deles cuidassem.
Os raros
indícios de que dispomos dizem respeito aos bilhetes presos às roupas das
crianças abandonadas. Trata-se de uma fonte documental bastante interessante,
mas que deve ser analisada com olhos críticos. É muito provável que os bilhetes
fossem escritos por homens, principalmente padres, sensibilizados com a
situação da criança desamparada.
Esse
monopólio eclesiástico da escrita – infelizmente para os historiadores – apaga
as marcas do multiculturalismo inerente à sociedade colonial, formada por
europeus, africanos e indígenas. Além disso, esses bilhetes talvez não fossem,
por assim dizer, “sinceros”, e pretendessem apenas neutralizar as péssimas
expectativas dos vereadores ou dos administradores de hospitais coloniais, que
viam no abandono uma mostra de irresponsabilidade e de falta de amor materno.
Uma idéia expressa na escrita de um provedor da Santa Casa carioca, no início
do século XIX, que falava a respeito da roda dos expostos: dando jazigo aos
meninos, favorecem os desvarios das mães, e concorrem para apagar de seus
corações o amor filial -- origem de todos os cuidados -- de que necessita a
infância.
Mesmo que as
mensagens do abandono não tenham sido escritas pelas mães, ou tenham sido
influenciadas pelas expectativas institucionais, é impossível que não
refletissem minimamente os sentimentos maternos. De outra forma, por que as
mulheres se dariam ao trabalho de procurar homens alfabetizados para escrever o
texto que acompanharia seus filhos?
Trata-se, portanto,
de testemunhos indiretos, mas reveladores de um aspecto crucial da história da
infância, conforme veremos nos textos transcritos desses bilhetes, colhidos nos
Arquivos das Santas Casas da Misericórdia de Salvador e do Rio de Janeiro.
Essas instituições, entre 1726 e 1938, acolheram milhares de crianças na roda
dos expostos, embora um número ínfimo delas tenham sido acompanhadas por
bilhetes.
Em quase todos
os escritos clamava-se pelo bom tratamento dos filhos. Muitos se inquietavam
diante do futuro espiritual dos pequeninos. Era comum a solicitação de que o
batismo fosse administrado ou confirmado, por ter sido aplicado de maneira
incompleta. Eis, por exemplo, o que afirma um bilhete de 9 de janeiro de 1759:
“(...) esta menina chama-se Rita, está batizada em casa por sacerdote e se lhe
faltam os Santos Óleos (...)”.
A
garantia do precoce batizado não era apenas um gesto religioso, como também de
amor. De acordo com a mentalidade da época, as crianças que faleciam logo após
a cerimônia iam direto para o céu e se tornavam anjinhos. Em seus sermões e
confissões, os padres não se cansavam de repetir esse princípio. Alexandre de
Gusmão, pregador jesuíta e autor da Arte de criar bem os filhos na idade da
puerícia (1685), afirma em relação a um casal muito pobre, que batizou os
filhos e resistiu a abandoná-los: “Cousa maravilhosa! Foram-lhes morrendo pouco
a pouco todos os filhos, que Deus levou para si quase todos na idade da
inocência (...) e eles ficaram muito agradecidos a Deus por tão assinalada
Mercê”.
A preocupação
dos familiares de enjeitados também se expressava através da indicação do nome
da criança. No Brasil dos séculos XVIII e XIX, a transmissão dos “sobrenomes”
não era regulamentada. Os pais, manifestando preocupação em relação ao futuro
espiritual dos seus descendentes, utilizavam a liberdade para atribuir
sobrenomes religiosos aos filhos. Eis o que dizem dois escritos, datados de 29
de maio de 1782 e de 13 de outubro de 1783: “(...) vai esse menino que já é
batizado, chama-se Antônio José de Deus; (...) trouxe um bilhete que dizia já
estar batizado, chama-se Antônio de Santa Bárbara”.
O nome também
podia ser um meio de facilitar a futura localização da criança. Para tanto,
bastava escolher uma onomástica que fugisse à monótona cadência de marias,
josés e joões, comum à tradição popular colonial: “(...) trouxe bilhete em que
dizia estar batizado com o nome de Praxedes”; “(...) trouxe carta em que
declara se achar batizada em perigo de vida com o nome de Leopoldina”; “(...)
trouxe bilhete em que declara se achar batizado com o nome de Sérvulo (...)”.
Muitos escritos guardam ainda as angústias e sofrimentos dos corações daqueles
que eram obrigados a recorrer à roda dos expostos: “(...) remeto este menino
branco chamado Antônio José Coelho, para tratá-lo e tê-lo com o maior cuidado
que puder”; “(...) morreu sua mãe e por pobreza e falta de leite se enjeita
esta batizada chamada Joaquina, e por cita esmola ficamos pedindo a Deus pela
saúde e vida decente”.
A
preocupação com o futuro das crianças também se refletia na menção à origem
racial das mesmas. Em alguns casos, chegava-se mesmo ao extremo, indicando-se a
ascendência não-judaica (não-cristã-nova) do enjeitado: “por esmola e caridade
me recebam este menino (...) porque é branco, legítimo e cristão-velho”. O
temor em relação à escravidão, por sua vez, levava mães a explicitarem a
condição de ex-escravo, ou seja, “forro”, do recém-nascido: “(...) trouxe
bilhete do teor seguinte (...) Theodora Maria da Glória, filha natural já
batizada com quatro meses, forra. Deus a tenha para seu Santo Serviço”; “(...)
o mande batizar que é forro que Deus lhe dará o pago”; “(...) trouxe bilhete de
teor seguinte (...) Esta crioula de nome Bernarda já está batizada na Freguesia
da Penha, é forra”.
Os melhores
exemplos do abandono como forma de amor talvez sejam os de escravas que
enjeitavam os próprios filhos na esperança de que eles fossem considerados
livres. Conforme mencionamos, tais casos foram raramente documentados, mas
existiram: “(...) se entregou esta criança ao Senhor Mestre de Campo Antônio
Estanislau, por se averiguar ser verdadeiramente seu Senhor e ficar esta Santa
Casa livre de pagar sua criação, por fugir a Mãe da Casa do dito Senhor e
parir fora, pela confissão que a dita fez”; “(...) mandou-se entregar a Júlia
Telles da Silva Lobo, um seu escravo menor de nome Thomé que fora lançado à
roda dos expostos”.
O abandono não
era encarado como uma manifestação de falta de responsabilidade. Alguns
escritos chegavam ao paradoxo de apresentar o gesto como uma forma de amor, em
nada prejudicial à vida da criança. É o que lemos em um bilhete datado de 19 de
agosto de 1760 : “(...) rogo a Vossa Mercê queira ter a bondade de mandar criar
este menino com todo o cuidado e amor (...)”; “é este menino filho de Pais
Nobres e Vossa Mercê fará a honra de lhe criar em casa que não seja muito pobre
e que tem escravas que costumam criar essas crianças (...)”.
Eventualmente,
tais bilhetes atribuíam o abandono à impossibilidade moral de pais e mães
solteiras, adúlteras ou religiosas, manterem o filho. A confissão dos “amores
ilegítimos” era, no entanto, feita de maneira velada, conforme se registrou na
mesma data acima mencionada: “(...) acompanha a esta a um menino para Vossa
Mercê (...) a quem por mercê e honra de Deus pertence tomar conta dessas
crianças quando nascem de pessoas recolhidas e que são família que tem Pai e
por causa deste impedimento se não podem criar”. Reconhecia-se discretamente o
nascimento ilegítimo, antevendo-se como tal situação era constrangedora: “(...)
trouxe uma carta pedindo que por seus pais serem impedidos, e estarem para
casar, se crie a dita menina com todo zelo, que breve a mandarão buscar, e que
igualmente lhe pusessem o nome de Antônia”.
Os
impedimentos morais, a condenação à mãe solteira certamente contribuíam para a
multiplicação de abandonados, contudo, esse estava longe de ser o único motivo
para se justificar o recurso à roda nos expostos. Nos três exemplos a seguir,
registrados entre 1758 e 1830, enjeitados considerados brancos foram acompanhados
de escritos alegando pobreza e indigência como causa do abandono: “(...) vai
esta menina já batizada e chama Ana e pelo Amor de Deus se pede a Vossa Mercê a
queira mandar criar atendendo a pobreza de seus pais”; “(...) vai este menino
para essa Santa Casa pela indigência e necessidade de seus Pais”; “(...) as
duas meninas portadoras desta carta foram deixadas por necessidade de sua mãe
em casa de uma pobre, que vive de esmolas dos fiéis, e por isso que elas vêm
agora procurar asilo desta Casa da Santa Misericórdia”.
Por ocasião do
parto de gêmeos, a simples menção ao duplo nascimento era apresentada como
justificativa do abandono: “(...) trouxe bilhete (...) declara ser gêmeo e
pede-se chame Manoel”. Além de acolher bebês pobres e bastardos, a roda dos expostos
também recebia numerosos órfãos: “(...) remeto esta menina para a Santa Casa da
Misericórdia para se criar, é forra e não tem pai nem mãe, nem pessoa que se
doa dela, ainda não está batizada, está pagã; “(...) trouxe bilhete dizendo
(...) a menina já é batizada e chama-se Bibiana e por sua mãe morrer é que
chegou a este destino”; “(...) este menino já foi batizado pelo Reverendo Cura
da Sé e chama-se Izidio, e por falecer sua mãe, roga-se aos Senhores que por
caridade o queiram criar”.
Os
testemunhos acima mostram que o abandono de crianças decorria de imposições
morais e econômicas. Assim, os enjeitados tinham origem na moral patriarcal dos
senhores de engenho da Bahia e do Rio de Janeiro e também eram frutos das
conseqüências do sistema econômico que sustentava estes segmentos sociais;
conseqüência da miséria comum à vida da imensa maioria da população livre e
liberta da época. Mulheres brancas da elite e ex-escravas sofriam ao abandonar
os próprios filhos. O gesto não expressava, por assim dizer, um modelo familiar
alternativo, em que o amor maternal estivesse verdadeiramente ausente.
Renato Pinto Venânci, Revista de História da Biblioteca
Nacional, Edição nº 4, outubro/2005.
Enviado por: Profº Marcelo Osório
Costa, 3/7/16.
O abandono é uma triste realidade. Crianças são rejeitas pelos pais , mostrando que a criança foi feito de um desgosto , mostrando a ausencia do amor maternal e paternal . No caso dos escravos não havia essa rejeição porque os escravos eram propriedades so senhor e quando os filhos crescerem, seriam escravos. As vezes a mulher por ser mãe solteira abandona, evitando críticas da sociedade. Acho um absurdo , mães abandonarem o filho sem motivos , mas caso não tenha condição deviam procurar ajuda e não "jogar" a criança pelos cantos.
ResponderExcluirO abandono de menores é algo presente na sociedade desde a antiguidade, um tema difícil de ser lhe dado, que apresenta inúmeras causas, e até hoje, ineficientes soluções. O amor materno é o mais puro e sincero de todos, mas isso não significa que ele certamente sempre será presente, ou então muitas vezes é insuficiente para se sustentar um filho diante as dificuldades encontradas na vivência pelo mundo.
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