O ano é
1500. O lugar, uma praia qualquer do litoral brasileiro. Na maloca, iluminada
por fogueiras, vários homens se reúnem em volta de uma grande panela, uns
sentados no chão, outros sobre pedaços de madeira. Algumas mulheres muito ágeis
trazem cuias cheias de uma bebida densa e clara. Um dos homens se levanta e,
vibrando um pequeno maracá, começa a dançar e cantar em torno da panela. Sua
canção fala de um irmão morto, capturado quando da última expedição contra os
inimigos do outro lado da montanha. O homem pede às vozes do maracá que o
ajudem a vingá-lo, matando e devorando os odiados vizinhos.
De repente, um
velho que estava afastado se aproxima, um tanto trôpego, e começa a discursar.
Fala de seu parentesco e afinidade com o morto, de quem era tio e cunhado.
Conta que já havia matado, e comido, muitos daqueles inimigos, e que eles não
eram grandes guerreiros, sendo mais afeitos às emboscadas do que ao combate
direto. Os homens, e muitas mulheres, respondem ao discurso com risos e gritos
altos. As cuias esvaziam-se em um ritmo cada vez mais rápido, e agora muitos
estão dançando e discursando sobre lutas e sonhos. Alguns gritam e pedem mais
cauim às mulheres, mas a bebida daquela maloca já está esgotada. Cambaleantes,
mas ainda bastante dispostos a continuar a bebedeira, os homens levantam-se e
vão para a maloca seguinte, onde os esperam vários potes cheios, e a promessa
de uma grande noite de cantos e danças e de um dia de vitória e cabeças
inimigas esmagadas.
A colonização
européia do Brasil foi marcada pelo choque entre culturas e pela luta dos
recém-chegados contra vários costumes dos povos nativos. Entre esses costumes
estavam as cauinagens, festas em que se consumiam bebidas feitas de mandioca,
milho e frutas. Os índios, especialmente os tupinambás, se relacionavam com as
bebidas alcoólicas de uma forma bastante diferente da que os europeus estavam
acostumados no Velho Mundo. Aos olhos dos recém-chegados, os tupinambás
produziam e consumiam suas bebidas fermentadas de uma maneira nauseante,
pecaminosa e profundamente perigosa.
Durante e
após essas cerimônias, os europeus viam suas nascentes estruturas de poder, e
seus instáveis mecanismos de controle, serem desafiados por nativos que
pareciam “possuídos” por uma força demoníaca, que aparentemente fruía das
jarras nas quais suas estranhas bebidas espumavam. Grande parte dos esforços
dos colonizadores, especialmente dos missionários, foi dirigida à extinção das
práticas etílicas dos índios, vistas como uma ameaça à colonização de seus
corpos e mentes.
Durante essa
luta contra o beber indígena, defrontaram-se lógicas mentais e práticas sociais
bastante distintas, construindo-se identidades étnicas e estereótipos que
permitiram a elaboração de discursos que legitimavam o domínio dos
“civilizados”. A visão do “índio bêbado”, ainda bem presente nos dias de hoje,
foi construída com base nas primeiras experiências dos europeus com as festas
dos tupinambás.
Contudo, para
compreendermos o significado cultural das cauinagens, é necessário abandonar um
olhar sobre os prazeres etílicos que vê as bebidas unicamente a partir de um
ponto de vista “patológico”, como uma fonte de problemas sociais, ou mesmo como
algo apenas recreativo. No mundo pré-industrial, e mais ainda naquelas
sociedades chamadas de “primitivas”, as bebidas fermentadas eram parte
integrante da dieta e uma importante fonte de nutrientes essenciais (veja
boxe). Além disso, até o advento da era moderna, não se conheciam as bebidas
destiladas, que são a principal fonte dos problemas relacionados ao abuso do
álcool.
Desconhecer
esses fatos, e lançar para o passado as nossas preocupações contemporâneas,
pode levar-nos a equívocos, como o de considerar que o álcool representou um
simples instrumento do domínio europeu sobre os povos indígenas, como se estes
fossem vítimas passivas de um processo que estava além de seu controle.
Na verdade,
os índios tinham idéias bastante firmes a respeito do que seria uma boa bebida,
e deixaram esse ponto bem claro ao recusar o vinho que lhes foi oferecido pelos
portugueses da armada de Pedro Álvares Cabral. Nas palavras do escrivão da
frota, Pero Vaz de Caminha, “trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a
boca, não gostaram nada, nem quiseram mais”. Alguns dias depois, mesmo que os
nativos estivessem mais à vontade entre os portugueses, continuavam resistindo
ao vinho: o capitão Sancho de Tovar levou, ao seu navio, “dous mancebos,
despostos”, que comeram tudo que lhes foi oferecido (inclusive presunto), mas
não receberam vinho “por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem”.
Não é de se
estranhar que os índios tivessem rejeitado (pelo menos em um primeiro momento)
o vinho das caravelas, já velho e, possivelmente, avinagrado. Em comparação com
sua própria bebida, o cauim, o vinho português era algo tão estranho quanto os
“fartéis e confeitos”, que também lhes foram oferecidos e recusados sem qualquer
cerimônia. Aquela bebida era muito diferente de suas suaves cervejas nativas,
feitas de mandioca e milho, e de seus saborosos vinhos de frutas, dos quais se
destacava aquele feito com o caju.
Muitos homens
da Europa, e seus descendentes nascidos no Brasil, adoravam as bebidas
indígenas: no Tratado descritivo do Brasil em 1587, o senhor de engenho Gabriel
Soares de Sousa chamava a atenção para os portugueses e “mestiços” que bebiam
os cauins “muito valentemente”. O missionário francês Claude d’Abbeville, que
esteve no Maranhão em 1612, provou a bebida feita de milho e achou-a “ótima,
saborosa, com um gosto picante nada desagradável”. Outro francês, o padre Yves
d’Evreux, que também esteve no Maranhão entre 1613 e 1614, afirmou que a
cerveja de milho era “muito mais saborosa e saudável, por causa do contínuo
calor, do que o vinho e a aguardente”.
Não nos
enganemos, contudo, com essas opiniões favoráveis. O processo de elaboração do
cauim causava asco aos europeus, e isso por uma razão bem simples: a massa, de
mandioca ou milho, era mastigada pelas mulheres e cuspida nos vasos, onde era
deixada a fermentar. O jesuíta José de Anchieta, grande inimigo das cauinagens,
descreveu desta forma, em 1584, a fabricação do cauim: “este vinho fazem as
mulheres, e depois de cozidas as raízes ou o milho, o mastigam porque com isso
dizem que lhe dão mais gosto e o fazem ferver mais”.
Claude
d’Abbeville chegou a afirmar que muitos dos seus compatriotas, se vissem a
fabricação do cauim, diriam “que os índios são pouco asseados” e que
“prefeririam morrer de sede a experimentar essa bebida mastigada pelas mulheres
indígenas”. Mas Jean de Léry (missionário protestante que participou da
fracassada experiência colonial francesa na baía de Guanabara, entre 1555 e
1560) mostrou que o nojo dos europeus era bem infundado, ao comparar, de forma
irônica, as práticas nativas com a técnica do Velho Mundo, na qual os
vinhateiros, com seus “lindos pés, às vezes calçados de sapatões”, pisavam as
uvas, processo no qual se passavam “muitas coisas talvez menos aprazíveis do
que a mastigação das mulheres americanas”.
Mais
assustadora que a saliva das índias, porém, era a embriaguez provocada pelo
cauim. No mundo católico europeu, de onde vinha a maior parte dos colonizadores
do Brasil, a embriaguez era vista como um pecado, e grave, na medida em que
demonstrava uma falta de controle sobre os impulsos e desejos que permitia, e
incentivava, pecados piores, como a luxúria e a antropofagia. A temperança, por
outro lado, era encarada como uma grande virtude, que sinalizava o domínio
sobre atos e emoções que formava a base do comportamento de um verdadeiro
cristão.
Além disso, os
povos mediterrâneos, como portugueses e franceses, tendiam a usar as bebidas
como parte das refeições: vinho, azeite e trigo formavam a base da alimentação
mediterrânea desde a antiguidade greco-romana. Beber fora das refeições e beber
com o objetivo de se embriagar eram atos vistos como sinônimos de barbárie e
selvageria.
Nada mais
diferente desse padrão do que o modo de beber dos índios. Para começar, os
tupinambás (assim como muitos povos indígenas atuais) separavam radicalmente o
comer do beber: quando se comia não se bebia, e vice-versa. Não é à toa que uma
das afirmações mais comuns da documentação colonial, a respeito dos índios, é a
de que “eles não bebem quando comem”, o que marca nitidamente o espanto dos
colonizadores com uma atitude tão contrária aos seus pontos de vista.
Os nativos
bebiam, cotidianamente, suas tiquaras (água com um pouco de farinha) e mingaus,
mas reservavam suas cervejas e vinhos para as ocasiões especiais, como nos
casamentos e funerais, na recepção a convidados e visitantes, nas deliberações
sobre guerras e alianças e, sobretudo, naquela que era a principal festividade
dos tupinambás: a morte e devoração dos inimigos em seus rituais
antropofágicos.
Nessas
ocasiões, os índios bebiam até a última gota. O cristão-novo, e senhor de
engenho, Ambrósio Fernandes Brandão, escrevendo em 1618 sobre os tupinambás de
Pernambuco, dizia que a embriaguez era “seu costume mais ordinário”, e que, nas
festas, os nativos ficavam “juntos em roda todo um dia e noite inteira, sem
dormirem, bebendo sempre de ordinário muito vinho, até caírem todos por terra
sem acordo”. Aos missionários, não passou despercebido o componente sexual
daquelas festas, em que mulheres e moças também participavam alegremente,
“parecendo bem difícil a presença de Baco sem Vênus”, como disse o francês Yves
d’Evreux.
Nas
cauinagens, homens e mulheres se misturavam e se revezavam nas quedas e
vômitos, mas também nos discursos, feitos em altos brados, relembrando os
grandes feitos guerreiros de cada grupo em particular (“os vinhos são os
memoriais e crônicas de suas façanhas”, disse um jesuíta em 1610). Tais festas
representavam uma visão estarrecedora para muitos dos europeus, especialmente
os missionários. O padre jesuíta Fernão Cardim, que viveu no Brasil entre 1583
até sua morte, em 1625, pareceu ficar mais horrorizado com a embriaguez do que
com o canibalismo dos índios, ao descrever as festas que cercavam o sacrifício
ritual do inimigo preso.
Cardim
observou os muitos “potes de vinho postos em carreira pelo meio de uma casa
grande” e a barafunda de pessoas que se aglomeravam em torno deles. Quando
começavam a beber, era “um labirinto ou inferno vê-los e ouvi-los”, pois seus
gritos e bailes duravam vários dias, enquanto restasse bebida nos potes.
Lançando um olhar profundamente crítico aos modos dos nativos (“a cada passo
urinam [...] todos fallão a quem mais alto, afora outros estrondos...”), o
padre apontou a íntima ligação entre a festa do cauim e o canibalismo: as
bebedeiras eram “a própria festa das matanças”.
Os jesuítas
foram rápidos em perceber que as cauinagens representavam o pontapé inicial
para as guerras e para os ritos canibais. Perceberam, também, que as festas
formavam o arcabouço sobre o qual se construíam as relações políticas baseadas
na hospitalidade entre os grandes chefes, chamados pelos cronistas de
principais. Mais do que lutar contra “maus hábitos”, interessava aos jesuítas,
e a outros colonizadores, romper as bases do sistema cultural dos índios,
atacando ritos como a antropofagia, proibindo instituições como o casamento
poligâmico e combatendo as cauinagens, por serem ocasiões em que toda a cultura
indígena se expressava de forma entusiástica e, aos olhos dos colonizadores,
incontrolável.
Não é de
espantar, portanto, que o abandono do “beber supérfluo” (isto é, beber para se
embriagar) representasse uma condição sine qua non para a aceitação de
determinado grupo no grêmio da Igreja. Em 1560, o padre Luis da Grã, delegado
da Companhia de Jesus no Brasil, informou a alguns principais que queriam
estabelecer boas relações com os padres que, entre “os pontos mais essentiais
que avião de goardar”, estavam: “[...] que ninguem avya de ter mais [de huma
molher], e outro que não avião de beber até se embebedar [como cus]tumavão,
[...] e que não avião de matar nem comer carne humana”.
Nessa difícil
luta contra as bebidas, os padres tiveram a ajuda inestimável das mulheres
nativas. Essa era uma estratégia importante, já que todo o processo de
realização de uma cauinagem estava relacionado às mulheres. Além de produzir a
saliva que fermentava as bebidas, eram elas que plantavam a mandioca e o milho,
e que colhiam as frutas que seriam transformadas nos cauins.
Às mulheres
estava reservada a importante tarefa de fazer as igaçabas, grandes recipientes
de cerâmica em que as bebidas eram fermentadas, e as cuias onde eram
consumidas. No momento das festas, eram as mulheres que serviam os bebedores, e
eram também as mulheres que procuravam impedir (nem sempre com sucesso) que as
bebedeiras descambassem para a violência, escondendo armas e retirando maridos
e filhos de situações de conflito. As índias cristianizadas ajudavam os padres,
quebrando as talhas onde as bebidas espumavam e discursando sem trégua contra
as bebedeiras.
Outra
estratégia era a de “cortar o mal pela raiz”. Desde cedo, os meninos nativos
eram ensinados a evitar as cauinagens, ajudando as mulheres cristãs a quebrar
potes e ridicularizar os bebedores. Contudo, o lugar cultural central das
festas do cauim fica claro quando sabemos que os mesmos meninos, que destruíam
as bebidas quando crianças, bebiam a mais não poder quando chegavam à idade
adulta, “fazendo-se tão rudes e ruins” como seus congêneres pagãos, e fazendo
das bebidas “o pecado mais difícil de ser extirpado”, como disseram vários
jesuítas.
Com todas
essas dificuldades, os colonizadores acabaram por vencer as cauinagens.
Espoliados de suas terras, impedidos de fazer suas guerras, e de comer seus
inimigos, os tupinambás abandonaram suas antigas festas. As bebidas
tradicionais perderam seu lugar central como espaço de congraçamento e
hospitalidade, sendo substituídas por uma legítima invenção do Brasil colonial:
a cachaça. Mas esta é uma outra história.
João
Azevedo Fernandes, Revista de História da Biblioteca Nacional, Edição nº 4, outubro/2005.
Enviado por: Profº Marcelo Osório
Costa, 3/7/16.
O choque entre culturas, e a luta pela colonização em relação a resistência dos nativos foram fatos de destaque no processo de colonização. O texto é bem complexo, e retrata essas diferenças, principalmente se tratando do consumo de bebidas.
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