Representante dos
estudantes que ocupam mais de mil escolas no país, Ana Júlia Ribeiro prova que
ao menos uma porção importante da sociedade reage ao estado de exceção.
Ana Júlia discursa na
Assembleia Legislativa do Paraná e prova que os estudantes sabem o que fazem.
Uma jovem pouco mais que adolescente, Ana Júlia
Ribeiro representa admiravelmente os estudantes que hoje ocupam mais de mil
escolas em todo o País. Movimento praticamente ignorado pela mídia porque
mostra que uma porção importantíssima da sociedade reage ao Estado de exceção
imposto por um governo a serviço da casa-grande. Aqui há desassombro,
articulação, apego à razão, espírito crítico. Indignação, também,
inconformismo. Sinais preciosos de uma rebelião salutar, a justificar, em meio
ao descalabro da situação, uma esperança no futuro, próximo até.
No último dia 26 de outubro, a secundarista Ana
Júlia, de 16 anos, subiu ao Plenário da Assembleia Legislativa do Paraná para
falar aos deputados sobre as ocupações nas escolas do Estado. “De quem é a
escola? A quem a escola pertence?”, questionou os parlamentares com a voz ainda
embargada ao citar o inciso 6º, do artigo 16, da Lei nº 8.069. “Acredito que
todos aqui já saibam a resposta. E é com a confiança de que vocês conhecem essa
resposta que eu falo sobre a legitimidade desse movimento”, emendou. A
legislação de 1990, mencionada pela estudante, garante à criança e ao
adolescente o direito de participar da vida política.
A partir dessa pergunta, diante de dezenas de
políticos paranaenses, alguns incomodados, Ana explicou de forma dura e
sensível, alternadamente, todas as razões do movimento que ocupava, até o
fechamento desta edição, mais de mil escolas em todo o País, sendo quase 850
apenas no Paraná. Estudante secundarista do Colégio Estadual Senador Manoel
Alencar Guimarães (Cesmag), de Curitiba, ela falou sobre como a educação era a
única bandeira de um movimento apartidário.
“Eu convido vocês a participar das nossas ocupações, a nos visitar, a nos conhecer de perto”, disse aos deputados. “É um insulto a nós que estamos lá, nos dedicando, procurando motivação todos os dias, sermos chamados de doutrinados. (…) Não estamos lá pra fazer baderna, não estamos de brincadeira, a gente está lá porque acredita no futuro do nosso País. (…) O movimento estudantil nos trouxe mais conhecimento de política e cidadania do que todo o tempo que estivemos sentados e enfileirados em aulas-padrão”.
“Eu convido vocês a participar das nossas ocupações, a nos visitar, a nos conhecer de perto”, disse aos deputados. “É um insulto a nós que estamos lá, nos dedicando, procurando motivação todos os dias, sermos chamados de doutrinados. (…) Não estamos lá pra fazer baderna, não estamos de brincadeira, a gente está lá porque acredita no futuro do nosso País. (…) O movimento estudantil nos trouxe mais conhecimento de política e cidadania do que todo o tempo que estivemos sentados e enfileirados em aulas-padrão”.
A fala de Ana
Júlia invadiu as redes sociais e se tornou simbólica do movimento em defesa da
educação e ignorado pela mídia.
Poucas horas após a participação na Assembleia, o
vídeo com o depoimento de Ana começou a se alastrar nas redes sociais. No dia
seguinte, havia mais de 1 milhão de visualizações em apenas uma das postagens
no Facebook. Isso porque o discurso e a emoção da adolescente se tornaram o
símbolo de um movimento em defesa da educação que resiste a ataques e
tentativas de desarticulação.
Como a estudante explica aos deputados, o movimento
de ocupação de escolas públicas começou no início de outubro, no Paraná, por
conta da MP 746, publicada pelo governo Michel Temer em setembro, que impôs uma
reforma no ensino médio sem que os pontos fossem debatidos com a sociedade
brasileira. Entre as novidades, a Medida Provisória traz a implementação do
turno educação integral a partir de 2017. De acordo com o texto, publicado em
22 de setembro, a carga horária mínima para os estudantes do ensino médio passa
a ser de 1,4 mil horas, em vez das atuais 800 horas/ano.
O ponto mais polêmico, no entanto, diz respeito à
flexibilização da grade curricular. Com isso, metade da carga horária do ensino
médio teria como disciplinas um conteúdo considerado obrigatório, definido pela
Base Nacional Comum Curricular, ainda em processo de discussão, e o restante
definido pelos interesses do próprio aluno. Isso quer dizer que, a partir do
meio do segundo ano, os secundaristas devem escolher entre cinco trajetórias:
linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação
técnica profissional.
Por conta disso, o texto da MP coloca artes e
educação física, por exemplo, como obrigatórias apenas nos ensinos infantil e
fundamental, o que indica que essas disciplinas poderiam deixar de ser mais
aplicadas no nível médio. O governo Temer chegou a divulgar ainda que
sociologia e filosofia deixariam de fazer parte do grupo de disciplinas, mas
voltou atrás pouco antes da publicação do texto por causa da polêmica. Agora,
oficialmente, o governo federal diz que essas matérias para serem incluídas
estão sujeitas ao resultado de consulta popular da Base Nacional Comum.
Foram algumas das mudanças que geraram reação
imediata dos secundaristas. As primeiras ocupações, embriões ao movimento,
aconteceram justamente em escolas localizadas em regiões periféricas. A
primeira delas foi no Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen, em um bairro de
São José dos Pinhais, cidade localizada a 13 quilômetros da capital paranaense.
“A gente se reuniu no shopping com uma galera de
vários colégios para falar da MP. A partir disso, marcamos uma reunião na
praça, aqui de São José dos Pinhais, e criei um evento no Facebook. Foram 400
pessoas. Vieram secundaristas até de Curitiba”, explica Mariana da Silva
Gomiela, de 16 anos, estudante do 2º ano do ensino médio no Jansen.
ara saber como entrar nas escolas e permanecer em
forma de protesto, a estudante conta que leu um manual, que reúne dicas de
estudantes chilenos e argentinos sobre o assunto. O documento foi produzido a
partir da experiência do movimento secundarista no Chile em 2011. “A gente saiu
pelas ruas em protesto, mas a gente sabe que passeata não dá mais em nada no
Brasil. Então deliberamos sobre ocupar os colégios”, complementa.
Atendente de telemarketing antes do início das
ocupações, e, por conta do movimento, ela acabou perdendo o emprego, Mariana vê
a questão do ensino em tempo integral como o principal obstáculo para os
estudantes mais pobres. “A reforma do ensino médio prevê aula em tempo
integral. Isso é irreal, porque muitos dos alunos de escola pública,
principalmente, trabalham por necessidade, para ajudar a família a ter o que
comer”, afirma. “E mesmo assim muitos deles já deixam a escola. Se for aula integral,
ele vai optar por trabalhar em vez de estudar”, conta.
Alckmin cuida de pôr a
força na rua.
A partir da primeira ocupação, no dia 4 de outubro,
os secundaristas de outros colégios começaram a levar o debate para suas
escolas e outras unidades foram ocupadas em São José dos Pinhais. Em dois dias,
o movimento chegou a Curitiba, alcançou mais de 20 escolas e se alastrou pelo
Paraná. Nesse meio-tempo, os estudantes ganharam mais uma razão para o levante:
a aprovação da PEC 241. No dia 11 de outubro, a proposta que congela os gastos
primários pelos próximos 20 anos, como saúde e educação, passou em primeiro
turno na Câmara dos Deputados, com 366 votos. Com isso, surgiram os primeiros
cartazes e faixas contra a proposta nas grades e portões das escolas ocupadas.
A onda chegou a Minas Gerais, estado que possui a
segunda maior quantidade de escolas ocupadas. Os secundaristas mineiros
ocuparam mais de 60 escolas, sendo a maioria na região de Uberlândia. Na
sequência, foram registrados movimentos semelhantes em estados como Rio Grande
do Sul, Goiás e Espírito Santo. No total, 19 estados e o Distrito Federal já
tiveram escolas ocupadas desde o começo do mês. Em São Paulo, a maioria das
intervenções está sendo feita em institutos federais. Nas duas tentativas de
ocupação de escolas estaduais, rapidamente, a Polícia Militar, a mando do
governador Geraldo Alckmin, reprimiu o movimento. O estado foi palco de grande
mobilização dos secundaristas no ano passado, quando os estudantes conseguiram
evitar que o governo tucano fechasse algumas escolas, na chamada “reorganização
escolar”. Esse movimento foi uma das inspirações para as primeiras ocupações no
Paraná.
Assim como o estado sulista, parte considerável dos
secundaristas paulistas vinha de regiões periféricas ou de famílias de baixa
renda. Na época, uma pesquisa feita por professores da Universidade de São
Paulo e da Universidade Federal de São Paulo, junto a uma passeata dos
estudantes do ensino médio, mostrou que 46% deles tinham renda familiar de no
máximo até três salários mínimos e 33,6% eram negros ou pardos.
“Há a educação formal, com aulas de química,
física, matemática, que não dialoga mais com o jovem, e este não suporta mais
ficar somente sentado escutando, e há uma educação informal, que o jovem tem
pela internet, grupos, rede social, fora da escola. Por isso, mesmo com a
escola sucateada, o jovem está se politizando”, opina a professora Esther
Solano (Unifesp), que estuda as manifestações. E acrescenta: “Talvez ele não
tenha uma boa aula de química, mas vai para as manifestações, conversa em
grupos, tem toda uma rede informal de educação que não passa mais pela escola”.
O presidente Traiano,
enquanto Ana Júlia fala, ri, mas não tem um único, escasso pingo de senso de
humor.
Como mais de 80% das escolas ocupadas estão no
Paraná e a mídia ignorou o movimento nacionalmente, o debate se tornou mais
intenso na capital paranaense e em cidades do interior do estado. Logo virou
assunto também das eleições em Curitiba, onde Ney Leprevost (PSD) e Rafael
Greca (PMN) disputam a prefeitura em segundo turno. Greca conta com o apoio do
governador Beto Richa.
Quando o movimento ainda era tímido, Richa disse
que os estudantes estavam sendo usados por políticos do PT e da Central Única
dos Trabalhadores e entrou com diversos pedidos de reintegração de posse por
meio da Procuradoria-Geral do Estado. Debochou. “Uma perfeita doutrinação”,
sentenciou. Não imaginava que a afirmação seria respondida por Ana Júlia
Ribeiro, na própria Assembleia Legislativa, quase um mês depois.
Assim que o movimento se espalhou pelas cidades do
Paraná, o governador mudou o discurso. Pela imprensa, garantiu aos estudantes
que não aplicaria a reforma do ensino médio no estado antes de um amplo debate.
Mas o governo federal entrou em cena. O ministro da Educação, Mendonça Filho,
chegou a dizer que cancelaria o Enem nas escolas ocupadas, caso os protestos
continuassem.
Uma semana após essa afirmação, um estudante foi
morto dentro de uma das escolas ocupadas. Lucas Eduardo Araújo Mota, de 16
anos, morreu após ser esfaqueado na região do tórax e pescoço por um amigo de
infância, de 17 anos. Ambos participavam da ocupação no Colégio Estadual Santa
Felicidade, em Curitiba. Estudantes ouvidos pela Polícia Militar afirmam que os
dois chegaram à escola com comportamento estranho e um deles, quando
questionado, teria assumido que os dois usaram uma droga psicodélica mais cedo.
Os estudantes
reclamam também dos líderes de movimentos de esquerda, ligados a partidos, que
chegam para se promover.
A tragédia despertou a ira dos que classificam as
ocupações como “badernas” e acusam os estudantes de depredar os locais de
ensino, usar drogas e praticar sexo. A morte de Lucas carece de uma
investigação apurada, embora diversas autoridades a digam anunciada. Ana Júlia
também respondeu aos que fazem uso político do episódio. “Ontem eu estava no
velório do Lucas e não me recordo que algum desses rostos aqui presentes
estivesse lá. Empolgada, prosseguiu: “As mãos de vocês estão sujas com o sangue
do Lucas”. Reagiu o presidente da Casa, Ademar Traiano (PSDB, aliado de Beto
Richa), que ameaçou suspender a sessão. Tão representativo de uma categoria
tosca que ignora a bonomia, para não dizer senso de humor. Tivesse tais
qualidades, tão insólitas no panorama, diria: “Não me sinto com as mãos
ensanguentadas, mas prossiga”.
Além de alvos do governo do Estado e de uma parcela
de professores ou diretores de colégios, os estudantes secundaristas parecem
estar no meio da polarização que tomou conta de organizações de esquerda e
direita. No Paraná, os secundaristas relatam que rojões ou pedras são usados
contra as escolas durante a noite. Alguns atribuem os ataques aos movimentos de
direita que intensificaram suas ações no estado após o crescimento das
ocupações.
Os estudantes reclamam ainda dos líderes de movimentos estudantis de esquerda, ligados a partidos políticos tradicionais, que costumam entrar nas ocupações para colocar bandeiras ou passar palavras de ordem. Esse tipo de imposição gerou rejeição às principais uniões estudantis. Muitos colégios não têm sequer a bandeira da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes). “Chegou um líder da União Paraense dos Estudantes Secundaristas (Upes) aqui, tirou uma foto dele na ocupação e cinco minutos depois foi embora porque tinha de viajar. Nem ajudar a carregar as coisas ele ajudou”, diz uma secundarista que prefere não se identificar.
Os estudantes reclamam ainda dos líderes de movimentos estudantis de esquerda, ligados a partidos políticos tradicionais, que costumam entrar nas ocupações para colocar bandeiras ou passar palavras de ordem. Esse tipo de imposição gerou rejeição às principais uniões estudantis. Muitos colégios não têm sequer a bandeira da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes). “Chegou um líder da União Paraense dos Estudantes Secundaristas (Upes) aqui, tirou uma foto dele na ocupação e cinco minutos depois foi embora porque tinha de viajar. Nem ajudar a carregar as coisas ele ajudou”, diz uma secundarista que prefere não se identificar.
O ministro Mendonça Filho
chegou a ameaçar com a cancelamento do Enem nas escolas ocupadas. O governador
Richa de início falou em "perfeita doutrinação", depois prometeu não
aplicar a reforma e, enfim, curvou-se ao governo federal.
Nas visitas em que fez aos colégios ocupados, CartaCapital encontrou um cenário bem distinto do descrito em grupos do Facebook que são críticos às ocupações. Muitos colégios colocam, como condição para a entrada, uma revista dos pertences pessoais de alunos, pais e professores. Mais do que isso, os estudantes adotaram escalas e divisão de tarefas. Todos reproduzem um sistema parecido. Os ocupantes dividem-se em comissões, de comunicação, segurança e cozinha, entre outras. Cada qual fica responsável por atividades de uma área. Além disso, em todos as ocupações, há cartazes com os horários estabelecidos para limpeza, almoço, jantar e horário de dormir. Os estudantes também dividiram as salas em dormitórios masculinos e femininos. Muitos pais passam a noite na ocupação com seus filhos e ajudam nas atividades de limpeza, cozinha ou segurança. “Grande parte da sociedade, ainda que aceite que a educação deve melhorar, coloca a ordem pública acima de tudo. As escolas estão rompendo com essa ordem. Mas eles querem uma escola diferente. Não querem mais essas escolas tradicionais”, afirma Esther Solano.
A organização interna nas ocupações não tem
impedido que o Ministério Público, ou conselheiros tutelares, também se
empenhem contra a ocupação. Em Miracema do Tocantins, cerca de 20 estudantes da
Escola Dona Filomena Moreira de Paula teriam sido retirados à força de uma das
escolas e levados algemados à delegacia com o aval de um promotor. Ameaças
também foram registradas em escolas do interior do Paraná, onde os promotores
estariam preparando ações civis contra os jovens. “Parece haver promotores
tentando identificar alguns dos estudantes”, explica a advogada Tânia
Mandarino, do grupo Advogados e Advogadas pela Democracia, que auxilia as
ocupações.
Os estudantes querem continuar com o movimento. Um
estudante de 18 anos, que preferiu não se identificar, está em uma das escolas
fechadas de São José dos Pinhais. Secundarista do 3º ano do ensino médio, ele
trabalha como porteiro em um clube de classe média da cidade. Recebe pouco mais
de 600 reais por mês e não é registrado. “Todo mundo do ensino médio aqui nesta
escola trabalha. Se eu estivesse no 1º ou no 2º ano, com essa MP de educação
integral, eu já teria saído da escola. Não é porque vou terminar o curso que
não vou lutar, é o direito do meu irmão, da minha família. Em vez de aumentar
os gastos com educação, querem cortar o que já não tem?”
*Colaborou Ingrid Matuoka.
Pílulas da sabedoria de Ana Júlia:
“A minha
pergunta inicial é: de quem é a escola? A quem a escola pertence? Acredito que
todos aqui já saibam essa resposta, e é com a confiança de que vocês conhecem
essa resposta que eu falo sobre a legitimidade deste movimento, sobre a
legalidade.”
“A reforma da educação é prioritária, mas precisamos
de uma reforma que tenha sido debatida, conversada, que precisa ser feita pelos
profissionais da área da educação. A Medida Provisória tem seu lado positivo,
mas tem muitas falhas. Se colocarmos ela em prática com essas falhas, o Brasil
vai estar fadado ao fracasso.”
“A nossa única bandeira é a educação. Somos um
movimento apartidário, dos estudantes pelos estudantes. Que futuro o Brasil vai
ter se não nos preocuparmos com o senso crítico? Temos de ser contra um
analfabetismo funcional, que é um grande problema no Brasil hoje.”
“A PEC 241 é outra afronta. É anticonstitucional, é
uma afronta à Constituição Cidadã de 1988. Nela a gente tem a seguridade
social, e a PEC 241 acaba com isso.”
“O Escola Sem Partido nos insulta, nos humilha, nos
fala que não temos capacidade de pensar.”
Fonte http://webviewer.iba.com.br/viewer?ticket=4426bef3f57377c4d1851e38a0a6e80d
Revista
CartaCapital 2 de Novembro de 2016 - Ano XXII - Nº 925.
Enviado por: Profº
Marcelo Osório Costa.