“As fronteiras da Europa devem ser fechadas”, disse o primeiro-ministro
da Hungria, Victor Órban, em setembro de 2015. Àquela altura, a chegada de uma
massa incalculável de refugiados à Europa Central transformou a estação de
trens de Keleti, em Budapeste, no epicentro improvável de uma enorme
calamidade. Ao caldo tradicional de iraquianos, líbios, afegãos e outras
populações fugindo do colapso de países africanos e do Oriente Médio, foi
acrescido um enorme número de sírios que escapam do Estado Islâmico e de uma
guerra civil que parece sem fim.
Por mais trágica que seja a história dessas pessoas, o discurso de Órban conseguiu chamar a atenção internacional, não só por ordenar a mobilização ostensiva de forças de segurança, mas também por comprovar seu talento para comentários de gosto duvidoso sobre a incompatibilidade religiosa ou cultural dos recém-chegados. O húngaro foi, e continua sendo, o herói da xenófoba extrema-direita europeia, em franco crescimento, e resultado direto da inabilidade da União Europeia em chegar a algum consenso moral sobre suas responsabilidades pela crise.
Acampamentos sendo desmontados por soldados que atiram gás lacrimogênio
em famílias inteiras, crianças isoladas por cercas de arame farpado, uma
jornalista chutando um senhor idoso que corre do cerco policial: cenas que
reforçaram, entre agosto e outubro de 2015, o exemplo que a Hungria queria dar
para o resto do continente. O país, que produziu um êxodo de mais de 200 mil
pessoas durante a repressão comunista em 1956, tem agora como primeiro-ministro
um sujeito que respondia à crise dizendo que todos os campos de refugiados
deveriam ser fechados e seus ocupantes mandados de volta para casa.
Não é necessário ser um alto comissário de Direitos Humanos para
entender que um refugiado é alguém sem grandes alternativas a não ser fugir da
sua própria terra. Na maioria das vezes por conta de guerras civis, de
perseguição política ou de situações degradantes que não oferecem qualquer
possibilidade de vida decente. Mas para compreender o que significa essa gente
chegar até a Europa Central, é preciso saber, em primeiro lugar, que a grande
maioria de refugiados sírios – que deram proporção superlativa a essa crise – é
composta de indivíduos e famílias com recursos suficientes para atravessar meio
continente pagando caro pelo serviço de contrabandistas. Quem não pode é
obrigado a tolerar a guerra ou um dos enormes e insalubres acampamentos em
países vizinhos. É preciso saber, também, que quem chega a Budapeste enfrentou
uma perigosa viagem pelo Mediterrâneo em barco superlotado, até encontrar
abrigo em alguma praia ou barco de resgate. Ficou num campo cercado ou nas ruas
de alguma cidade costeira. Atravessou Grécia, Macedônia e Sérvia – muitas vezes
caminhando. Dormiu ao relento, cruzou cercas, arames e barreiras policiais. Se
tudo der certo, vai parar em campos improvisados onde deve aguardar pela
decisão oficial sobre o seu caso. A espera pode levar até dois anos, num limbo
institucional, sem garantia de poder trabalhar ou recomeçar a vida.
Em Viena, já no final de agosto, todos sabíamos que era questão de tempo
até a Hungria ceder. Depois que foi encontrado um caminhão frigorífico
abandonado com os corpos de 71 refugiados, o governo austríaco reconheceu que
chegara sua vez de lidar com o fato. Liguei então para uma amiga envolvida com
o trabalho de ONGs e perguntei se ela sabia de alguma movimentação. “Ainda não,
mas você pode ir à manifestação hoje. É a favor dos refugiados e pedindo
melhores condições em Trainskirchen”, respondeu ela, referindo-se ao principal
abrigo, a cerca de meia hora da capital austríaca. Quando visitei o lugar, dois
meses antes, já havia superlotação e o improviso de barracas montadas nos
jardins em torno do prédio principal.
A caminho do evento, recebi notícias desencontradas, dando conta de que
o bloqueio fora quebrado em Budapeste e de que muitos estariam a caminho de
Viena. Se era para a Alemanha que queriam ir, precisavam descer e trocar de
trem na Westbahnhof, ao lado de onde os manifestantes se organizavam. Consegui
chegar a tempo de testemunhar os primeiros trens lotados darem entrada na
estação. Antes de mim, não mais de 40 pessoas já aguardavam com frutas e
garrafas d’água as pessoas que fariam a troca para o trem rumo a Munique. Do
lado de fora da estação, 20 mil pessoas carregavam cartazes dizendo “Nenhum ser
humano é ilegal” e “Refugiados são bem-vindos”.
No dia seguinte, ONGs, a Prefeitura de Viena, um grupo enorme de
tradutores e a empresa estatal de transporte ferroviário tinham uma estrutura
montada para receber e atender quem precisasse de apoio antes de seguir viagem.
A insistência de Orbán em bloquear novamente grupos inteiros que chegavam a
Budapeste não impediu que vienenses organizassem comboios de carros
particulares para ir buscar o maior número possível de refugiados que foram
impedidos de continuar. Robert Misik, respeitado jornalista, confessou ter
cometido crime ao transportar “imigrantes ilegais” no seu carro. Alegou que não
existe nada pior do que cruzar os braços em tal situação.
Foram 40 dias de fluxo contínuo e um esforço cívico atípico, até que a
Hungria conseguisse, por fim, cercar e controlar ostensivamente sua fronteira
com a Sérvia. A chegada do inverno, com a obrigação de optar por rotas mais
longas, afastou o epicentro da crise para outras áreas. A partir daí, a
extrema-direita começou a capitalizar em cima das incertezas sobre como a
Europa iria lidar com mais de 1 milhão de refugiados, em sua maioria
muçulmanos. A Prefeitura de Viena, sob o comando da Social-Democracia desde
1945, pela primeira vez foi ameaçada por uma votação recorde do Partido da
Liberdade (FPÖ), nacionalista radical. Em 2016, menos de 1% dos votos definiram
a derrota, na eleição presidencial, do candidato do FPÖ para Alexander Van der
Bellen, do Partido Verde.
Fica cada vez mais claro que não foram os longos anos de conflito no
Oriente Médio, ou o esfacelamento de Líbia e Síria em guerras civis, que
fizeram a palavra crise entrar no discurso de jornalistas e burocratas na
Europa, mas o constante desembarque indesejado em suas praias. Ninguém nega que
as 3.771 mortes em naufrágios no Mediterrâneo, somente em 2015, sejam uma
tragédia. Mas a União Europeia parece mais preocupada em proteger adequadamente
suas fronteiras. A única operação dedicada a socorrer as vítimas de naufrágios,
Mare Nostrum, foi encerrada em outubro de 2014 e substituída por uma força de
controle de fronteiras dedicada a mapear e reduzir a chegada de barcos e
náufragos. Os últimos esforços incluem um acordo com a Turquia, assinado em
março de 2016, para que o país aceite receber de volta “imigrantes ilegais” que
conseguiram chegar à Grécia.
Para ser justo, não se trata de o bloco europeu não se importar
deliberadamente com o custo humano da crise. Com os países discordando tanto
entre si, proteger as fronteiras talvez seja o único consenso possível.
Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, lembrou que, a despeito
do grande número de refugiados, eles representam somente 0,11% da população do
continente. Em um país como o Líbano, a proporção chega a 25%. Ajudar os
refugiados, segundo Juncker, é “uma questão de humanidade e dignidade para a
Europa. É uma questão de justiça para com a história”.
O fato de a Alemanha abrir as portas só fez aumentar a tensão. República
Tcheca, Polônia, Eslováquia e, claro, a Hungria de Victor Órban se uniram para
rejeitar o sistema de quotas que chegou a ser ventilado como uma alternativa
para distribuir os refugiados entre todos os países. Dizem que a crise é, na
verdade, um problema alemão. Chamam refugiados de imigrantes econômicos e
declaram aceitar apenas cristãos. Segundo o presidente tcheco, Miloš Zeman,
abrir as fronteiras para muçulmanos significa permitir a expansão do Estado
Islâmico na Europa.
Crises têm o papel decisivo de revelar o que há de pior e de melhor em
uma situação, muitas vezes simultaneamente. Com a chegada do verão, e quase
2.500 vítimas fatais em 2016, contabilizadas até o dia 30 de maio, a Europa
precisa definir qual lado vai abraçar: seu legado universalista ou sua face
xenófobo-nacionalista. Ficar em cima do muro pode ser fatal.
Bruno
Garcia, Revista de História da
Biblioteca Nacional, Edição nº 124, agosto/2016.
Enviado por:
Profº Marcelo Osório Costa.
Um dos grandes problema das atualidade é a crise de imigrantes, principalmente na Europa. Segundo a ONU cerca de 2,5 mil imigrantes se afogaram no mar Mediterrâneo neste ano vítimas dos muitos barcos superlotados que tentam chegar à costa da Itália e da Grécia para fugir de seus países, por causa de guerras, perseguições religiosas, entre outros motivos.
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